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Saga - Uma História Por Contar...


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Ainda a ler o "Saga"? Não há mais nada para fazer? :laugh_mini:

Fora de brincadeiras, obrigada a todos. Agredeço do fundo do coração quem lê todas as semanas esta minha pequena história. Hoje mais um capitulo. O decisivo, antes da acção "verdadeiramente" começar. Boas leituras ;)

Colisão

Alexandre estava ainda no escritório sozinho já a noite ia alta no céu. O calor húmido e abafado ainda se fazia sentir. Ao percorrer os episódios da manhã sentia ainda a traição a arder em si, declarando-se viva e a minar. Sofria, mas seria o Barão de Belize digno de sofrer? Percebia em si afinal uma réstia de dignidade humana a despontar, fraca, insípida. E temia, ouvindo ainda a voz de Valentina, não ser capaz de chegar a ela e traze-la viva ao cimo de si. O coração acelerado de Alexandre galgava-lhe o peito, galopante, enquanto os sentidos percorriam e reliam as palavras que assinara há apenas algumas horas atrás e que o horrorizavam.

Alexandre parou baixando a cabeça, retendo na memória o estranho conteúdo que assinara. Pela segunda vez, a náusea voltava inteira a atormentá-lo.

- Não posso mais! – Gritou o Barão deitando para fora toda a contenção que o comprimia.

Uns passos, cabisbaixos, penitentes, ecoaram no silêncio sideral daquelas divisões desertas.

- Esperei por ti a tarde toda. – Falava o Barão ao conselheiro, só agora regressado, de face lívida e olhos encovados, procurando uma justificação em Zeph Willoughby.

- Desculpe Senhor… parece que hoje o dia serviu apenas para lhe dar más notícias… Está lá fora…um carro. Querem vê-lo. – A gaguez apoderava-se do Conselheiro, como se o som se entalasse na garganta sem vontade de sair.

O Barão saiu do escritório fechando a porta e com ela todos os rumores daquele dia.

O relógio da Igreja batia majestoso vinte e uma badaladas.

Do carro estacado mesmo diante dos seus passos saiu uma mão de homem, pequena e roliça, fazendo-lhe sinal para entrar. Alexandre fez um gesto com a cabeça a Zeph que saiu ligeiro em direcção contrária.

Entrou no carro. Um homem de cabelo grisalho, rosto anafado e róseo limpava com um lenço o queixo duplo debruado de suor.

- Boa noite, Governador. Não me conhece, mas acredite que é para mim um prazer falar com tão ilustre figura. – O homem guardava o lenço na lapela e perscrutava os gestos de Alexandre que o olhava nervoso e em dúvida – Vim agora mesmo da Base de Edin e estou felicíssimo com tão franca adesão à Aliança. Desculpe não me ter apresentado – Continuou em tom leve e divertido – sou o Chanceler.

O homem gordo, hediondo, persistia em êxtase voltado para o Governador que se agitava, ainda mal adaptado aos assentos daquele carro.

- Agora que a Terra faz parte do Império os Anunnaki controlam a natalidade com um sistema que apenas permite aos melhores reproduzirem-se…infelizmente deve perceber que poucos são os que estão ao alcance de serem reprodutores do Império. - O tom cravado de ironia, penetrara nas entranhas do Barão.

- Se quer um filho, Governador, não o podem ter "juntos". Mas não tem que se dilacerar continuamente com isso. Há outras formas.

- Eu tinha um sonho, e de repente tudo mudou… – Bradava o Governador. Sentia-se pequeno, como se a vida lhe passasse ao lado sem tocá-lo sequer. Cada palavra parecia martela-lo no fundo de si e estremecia.

- Tinha um sonho… tudo mudou… – Imitava-o jocoso o Chanceler. Ria-se alarvemente, vermelho, a barriga saliente inchada, projectada como se fosse rebentar o colete apertado demais para as suas medidas. - Tudo mudou, tudo! – A ocupação é real! Não somos mais o topo da pirâmide, somos a criatura de companhia de uma raça qualquer! Temos que viver pelas suas normas, com os seus modos. Não podemos permanecer instalados na nossa solidão de seres superiores. – Gritava, a paciência para com o Governador expirada no calor daquele carro, o bafo quente a roçar o rosto de Alexandre.

- Quando tiver um filho, este terá que nascer de um sistema de castas, dentro das quotas de seres humanos de biótipo perfeito… – Continuava o Chanceler, recuperando a calma, os olhos ainda fixos em Alexandre, a tentá-lo.

Tudo isto aparecia ao Governador em ironia. Tantos anos tinha feito dos outros a extensão das suas vontades que agora o mundo revoltava-se fazendo dele objecto da vontade de outros.

Alexandre sentia a vertigem do precipício de onde o jogavam. Mas não cedia.

O carro parou diante dos majestosos portões esverdeados e Alexandre, olhando através dos vidros fumados da viatura, reconheceu a casa onde vivia, sua propriedade há quase 20 anos. Enraivecido abriu a porta fazendo tensões de sair.

- Se eu fosse a si, não saía já Governador. – O homem olhava o rosto em fúria de Alexandre que se debatia para abandonar o veículo.

- Não me pode impedir de entrar em "minha" casa depois de tudo o que passei hoje…- Alexandre foi interrompido pelo Chanceler que o olhava, surpreendido.

- Aí é que se engana meu caro Governador, esta não é mais a "sua" casa. Faz agora parte do Império.

Alexandre já não sorria ou pausava. Olhou esgotado o Chanceler. Levou as mãos aos cabelos escuros, procurando as palavras em busca de respostas.

O Chanceler estendia o braço gordo e curto a Alexandre que o olhou já sem forças. Pegou na pilha de folhas agrafadas que pendiam na mão do homem. Finalmente vencido leu os documentos que o outro lhe entregara.

"Eu, Alexandre Meireles Almeida de Albuquerque cedo os meus títulos pessoais, os meus bens e todos os meus cargos anexos aos Associados do venerado Império da Aliança de modo a cumprir cabalmente as funções tão honrosamente a mim concedidas. Mais cito que perante o Império me ofereço também para exercer o cargo de Governador da base de Edin, o terceiro entreposto construído pelo Grupo Inicial da Aliança. Abdicando de todos os privilégios a mim anteriormente concedidos para que possa, de forma plena e equitativa, liderar este entreposto do sacro Império em toda a sua visão..."

- O que significa isto? – Indagava o Barão, fraco, desapontado.

- Que tudo o que é seu, incluindo esta casa, foi confiscado e é agora nossa propriedade. – Respondeu-lhe frio e firme o Chanceler

Alexandre saiu em choque, os portões abertos deixavam antever a rampa que percorreu com as poucas forças que tinha até chegar ao átrio. Sentou-se na borda da fonte do cupido. Uns homens encontravam-se à porta carregando parte da mobília do Governador.

- Despache-se homem, não sei o que faz ainda à espera. Vá buscar a sua mulher e o resto das poucas coisas que ainda tem verdadeiramente suas. Ainda o esperamos para acompanhá-lo ao seu novo posto. – Atiçava-o o Chanceler, que o seguira até à entrada.

Alexandre virava as costas ao Chanceler, dirigindo-se às escadas em mármore que o levavam ao andar superior. – Não tenho que ceder a alguém de quem nem sequer sei o nome…eu sou o Barão Almeida de Albuquerque, a minha reputação precede-me nestas terras, nunca alguém ousou tentar-me tanto! - Gritava mais uma vez enfurecido.

- Eu se fosse a si continuava o meu caminho, seu demente. Ainda não percebeu que nada disto é seu? Construiu castelos na areia, Governador, e estes foram-se ao primeiro sinal de tempestade. Não é mais Barão, não é mais dono de nada, nem sequer da sua nobreza. E tem sorte em ser Governador, porque os homens não têm nome, seu lírico, somos apenas as nossas funções.

A conversa do Chanceler foi interrompida por um grito vindo do andar de cima. Alexandre precipitou-se para as escadas, pulando os degraus dois a dois.

No quarto, uma empregada de olhar perdido apontava a varanda ao Governador.

- Lúcia… – Conseguiu ainda murmurar Alexandre precipitando-se para o exterior.

Subiu três pequenos degraus que davam acesso ao telhado de olhos fechados e em pânico. Lúcia encontrava-se inclinada do outro lado das grades de protecção prestes a lançar-se. O vestido rosa com que a tinha deixado naquela manhã ainda vestido e ao vento, os cabelos vermelhos desarrumados tombavam com ela em gravidade, o rosto alucinado, de olhos esverdeados vermelhos de esforço.

- Outra vez não, outra vez não… - Chorava Lúcia enquanto largava uma das mãos das grades.

Lá em baixo o pânico dos restantes empregados juntou-se em coro, todos olhavam para cima. No telhado, Alexandre tentava a custo impedi-la de arremeter-se para a morte.

- Minha querida – disse-lhe docemente –Foram muitos acontecimentos para que os sigas friamente, bem sei.

Alexandre aproximou-se dela curvando-se, vendo a cabeça da mulher olhar o fundo, muito abaixo dela. Num ápice, agarrou prontamente umas das pequenas mãos frias da esposa. Puxou-a para si, para a segurança do telhado, tombando com ela no chão.

Lúcia tremia e chorava ao mesmo tempo que olhava em transe para o marido.

- Deixa-me…se não me matas, deixa-me ao menos morrer. Outra vez não. Não passo por tudo outra vez. Era a minha casa, a minha vida, minha

Alexandre respirou fundo inspirando tragos abundantes de coragem. Como lhe custava ver aquele olhar remoto da mulher sem rumo nem arrojo.

- Desprezo-te, Alexandre. Governador? O meu pai era Governador e "tu" o seu porto. Mataste-os…ficaste-nos com tudo. Perdi tudo uma vez, se não me matas, deixa-me morrer… não posso perder tudo outra vez…tiraste-me tudo…agora também tu ficas sem nada…- Alexandre sentado no telhado, ouvia como quem não escuta a conversa extravagante da mulher. Lúcia foi interrompida pelo marido que em desespero lhe encostou a cabeça contra o peito embalando-a. As lágrimas invadiram-lhe o rosto, molhando o peito do marido.

- Eu nunca confessarei isto, mas amo-te demais para te matar, ouviste?

Alexandre finalmente percebia. A decisão saia-lhe plena e de coração: apagaria nele qualquer centelha de orgulho e prosseguiria ao seu lado. Na sua vida sem princípio nem fim, fora Lúcia quem encontrou mesmo sem a procurar, sem saber.

De uma infância vazia, obrigara-a a brotar para uma adolescência cravada de artificialismos. Preocupado em fazer valer os seus jeitos, fê-la crescer uma sombra afastada de si e dos outros numa estrada onde nada se cruzava, nada se misturava no seu rumo onde o horizonte não se via. E guiara-a muitas vezes sem se perguntar porquê, ou para onde a levava.

No telhado, Lúcia já não chorava. Estatificara de cansaço, de mágoa e de dor, o sangue congelado no passado e na perda. Alexandre tomou a mulher no colo entrando com ela no quarto que fora de ambos. No quarto onde 30 anos antes Lúcia nascera.

Desceu as escadas com a mulher adormecida nos seus braços, deixando a casa que conquistara com o seu esforço. O Chanceler esperava-o no patamar da entrada impávido.

- Vamos embora, mas havemos de voltar. Esta será sempre a tua casa. - Murmurou Alexandre à esposa beijando-lhe os cabelos avermelhados.

Ao sair os portões de uma coisa Alexandre estava certo: terra é sempre terra. As rotas que traçava com os seus passos radicais jamais seriam apagadas daquele solo. De relance deitou um último olhar à mansão que deixava em colisão com o passado.

Nos meses seguintes milhares de pessoas haviam também de rumar forçadas ao futuro de Edin.

Num desses dias de 2012, nascia em segredo numa cave da Base, Miguel Meireles de Almeida e Albuquerque, a visão privada do Governador.

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Para todos os que seguem o "Saga" e para aqueles que querem conhecer a história, mas não a lêem por ter capítulos longos, aqui vai um resumo do que se passou até aqui, agora que a história entra numa fase decisiva. Boas leituras ;)

- Numa tarde chuvosa de Novembro de 2012 nasce, numa cave sem condições, um menino de nome Miguel. Filho do Barão e Governador da "cidade" Alexandre Almeida de Albuquerque é também o seu maior sonho e projecto de vida. Contudo, algo mancha esse sonho. O filho de Alexandre não nascera da mulher Lúcia.

- Depois de muito a persuadir, Alexandre consegue fazer com a mulher vá ver o filho que chamou de ambos. O criado Joaquim, faria de tudo para que o caso do nascimento do filho do Barão com outra mulher se dissipasse.

- Um ano antes, na Rússia, uma mulher entrega apressada uma criança num café aos cuidados de um antigo amigo de nome Ilya. Na pequena cidade portuária de Vyborg, rebenta o choque. Sasha de 8 anos, seguiu enfeitiçado a rota da mulher sendo repreendido violentamente por Roma Orloff, um velho lobo do mar que parece ter uma enorme mágoa pela misteriosa mulher que diz ter morto os pais do menino.

- Em Belize, a terra do Governador Alexandre de Albuquerque, uma Comissão composta por dois velhos amigos deste (César Gallardo e Colin Young) invade-lhe o escritório com a noticia de que uns seres tinham conquistado o Planeta e feito dela parte do seu Império. Com a Comissão vinha também Valentyna, observadora do Congresso (elo de ligação encarregue de reúnir as assinaturas do Tratado) procurando que o Barão assinasse o Acordo que possibilitou uma aliança entre o Governo deste e os seres espaciais.

- Valentina é, afinal, uma ex cidadã de Belize, vitima de um golpe de estado, desaparecida em condições ainda por explicar, e irmã da mulher do Barão (a quem ele tomou o poder, a casa e todos os seus bens). Não está ainda explicito o motivo do seu regresso nem como consegiu o cargo de observadora do Congresso da Aliança (nome que designa o Governo da Terra pelas duas espécies). Ela debate-se com Alexandre, num verdadeiro choque de titãs, garantindo que este estava prestes a perder tudo, inclusive a sua dignidade.

- Saído de um dia cheio de complicações, o Barão tem ainda que se deparar com um carro que o espera. o Chanceler (figura que comanda as 3 Bases que os Annunaki - seres espaciais de Nibiru -querem criar na terra como entrepostos comerciais de minérios ) "convida", de forma pressionante, Alexandre a gerir uma das Bases (Edin) que o próprio Chanceler supervisionaria. Sem outra opção uma vez que, aparentemente, no acordo da Aliança o Barão abdica da sua casa e dos seus bens (muito a custo da mulher Lúcia que tenta o suícidio) viajando para a dita Base.

Até aqui, nada mais a acrescentar. ^_^

Obrigada (e já sabem que é sentido) a todos os fieis leitores desta Saga que agora se desenvolve a grande velocidade.

Amanhã novo episódio. O 7º. Decisivo para a história...alguém vai morrer. Aguardem :rolleyes:

Até Amanhã!!!

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Cá estou eu com mais "Saga". Este capítulo é decisivo para o desenrolar da história. Espero que gostem.

Mentes abertas? Boas leituras ;)

Jorge, a "Saga" deve ter, mais ou menos, 15 episódios...

Base de Edín

Março de 2013

Ira

Lúcia caminhava certeira em direcção à cave. Olhava de soslaio para trás, certificando-se que não era seguida. Parou, levando as mãos ao bolso retirando um molho de chaves.

- Desculpa fazer-te isto, mas também não é que não o mereças. Cheguei até aqui e não tenciono recuar… – Afirmou para dentro de si, tentando convencer-se. Do molho de chaves que tinha na mão tentava encontrar, com a pouca luz existente, a que abriria aquela porta sem conseguir escolher. Experimentou uma a uma temendo que a encontrassem naquele local onde não tinha permissão para estar. Finalmente umas das chaves deslizou na fechadura e a porta escancarou. Não sabia para onde avançar e ficou parada no patamar de metal que a separava do solo abaixo. Aproximou-se da borda, segurando o corrimão de metal frio, olhando para cada divisão minúscula que o ângulo em que se achava deixava antever. Estava tudo calmo e deserto.

Perdeu o medo. Desceu as escadas o mais rápido que pôde e, ao poisar o pé descalço no chão num último passo, um choro de criança guiou-lhe a direcção. Avançou pelo largo, dividido a meio por um canteiro redondo adornado de exóticas plantas verdes, contornou-o entrando numa divisãozinha estreita.

Lúcia, estranhamente calma e lúcida, deparou-se com uns olhos cor de céu amedrontados que fixaram os seus em angústia profunda.

Olhou para o berço de onde uma mulher pálida retirava uma criança, que se calou instantaneamente.

Sentou-se em silêncio na beira da cama admirando a mulher amamentar um menino claro e calmo, de aproximadamente 3 meses.

- Ora aqui está uma coisa que nunca me darão oportunidade de fazer… – As palavras de Lúcia expeliam toda a decepção que se obrigara a reter em si durante tantos e longos meses. A mulher estatificou de pavor perante o comentário. Abriu ainda mais os olhos de espanto, as mãos que seguravam o filho a tremer, incertas.

- Não precisas ter medo, Clarisse. Cumpriste o teu papel.

Clarisse olhava a figura estranha de Lúcia sentada na sua cama, descalça, em roupão, falando mais depressa do que os seus sentidos podiam acompanhar.

- Será que ainda não te perguntaste o que faz uma mulher em 2012 “parir” uma criança nestas condições? Numa cave, perdida em sitio algum…podias estar morta. Sei porque aceitas-te fazer a inseminação, precisaste do dinheiro para ajudar os teus pais, percebo o teu desespero. Mas isso não justifica que te usem como animal reprodutor. És praticamente uma criança. Muito mais nova que eu. Que assistência te deram, Clarisse? – Lúcia pronunciava o nome da mulher sem qualquer sentimento, quase sem o dizer. As letras passavam-lhe tão ásperas e rápidas nos lábios que mal as sentia. Já Clarisse parecia degustar cada uma delas como um prato delicado. A fome com que sorvia cada palavra alimentava-a intimamente. Mas não se atrevia a falar. Embalava com desvelo o filho, extraordinariamente calmo, que dormia já saciado, nos seus braços com um sorriso na boquinha pequena.

- Tens que sair desta base. Tu e o teu…“filho”. Tem que haver alguém capaz de pôr um travão a este horror. Se tiver que ser eu, que seja. Vi o mundo desaparecer aos meus pés e não tenciono vê-lo cair perante mim uma segunda vez. Ainda há esta chance e não me dou por vencida. Foge com esta criança para que nunca mais vos descubram.

A porta abriu-se perante os olhos das duas mulheres. Diante delas, um homem severo, de olhar frio e distante, o cabelo oleoso e grisalho penteado uniformemente par trás, estendia o dedo gordo, apontado ao colo de Clarisse.

- Era assim que o Governador pensava que enganava o meu aguçado engenho. Tenho um bom faro. Nada, ninguém me engana! – Os olhos fervilhavam de raiva, a cara vermelha transfigurada de cólera.

- Afinal era esta “coisa” a quimera do grande Governador…que subtileza! – Continuava, a mente sempre em delírio, o Chanceler. - Ninguém nasce aqui sem a minha permissão! Ninguém! Eu mato-vos! Mato-vos mais a trouxa que carregam…

- Não tinha sido isto que tínhamos combinado! Não pode! Eu cedi, eu cedi à experiência! – O Governador entrava em transe na confusão daquele quarto. Estava desesperado, o rosto aflito carregado de suor, os olhos pretos percorriam torturados a penumbra do quarto balançando-se entre Lúcia e o filho.

O lugar iluminado apenas por um débil raio de luz proveniente de uma pequena janelinha deixava antever o Chanceler que se lançava lancinante sobre Alexandre, o novo objecto da sua ira.

- …ou melhor, mato-te traidor! Já devias ter percebido que o teu plano não podia dar certo. Querias ultrapassar-me? A mim? Livrei-vos dos ingleses, da corrupção. Se não fosse eu, Belize ainda seria um antro de prostitutas e marginais de vão de escada…

O Chanceler deitava um sorriso escarninho ao Governador que, pela primeira vez, não tinha respostas.

O choro do bebé irrompeu no quarto aumentando-lhe a ira louca.

- Qual delas mato primeiro, Governador? A sua “santa esposa” ou a progenitora do seu filho?

- A Lúcia não, por favor…ela não! Deixe-a ir, por favor… – Alexandre implorava, prostrado aos pés do Chanceler, lembrando-se fatalmente da figura de Spencer Johnson, quase 20 anos antes. Ele ao menos não suplicara. Pensava para si.

- É sem dúvida uma mulher admirável, agora entendo a sua fixação, Governador… – O Chanceler, contemplava Lúcia. O roupão aberto deixando antever os seus contornos bem delineados e esbeltos.

- Foge daqui, sai! – Gritou Alexandre a Lúcia que o olhava, plácida, sem qualquer emoção.

A alucinação arrebatada do Chanceler não o deixou ver Lúcia que permanecia em desafio. Os olhos ardilosos dele vincaram-se em Clarisse e percorriam-na de lés a lés, envolvendo-a em terror.

- Se a matam, matem-me também a mim! Desafiei-te uma vez, e acredita que o volto a fazer…não derramam mais sangue à vossa vontade. – Lúcia entrepunha-se praticamente colada na frente de Clarisse.

A fúria daquele quarto rompeu-se no som do tiro desferido certeiro naquele peito. A massa inerte tombou, vazia. No chão um pequeno carreiro de sangue desenhava-se, desbravando aquele solo de madeira. Vermelho de ira contra o castanho da terra num sondar rematado da morte no corpo que acalmava eternamente.

Alexandre gritava histérico, surdo e praticamente cego de horror e de lágrimas que lhe brotavam nos olhos. Sentiu o gosto salgado daquele rio cálido. Quase como se fosse de novo jovem, a força nascia-lhe animal das vísceras. Correu para o Chanceler pegando nele pelos colarinhos do fato suado e arremeteu-o contra a porta do quarto.

- Mata-me agora besta, ainda me queres matar, não queres? Eu tinha um nome, uma casa, um legado…Fede como um animal! Recomponha-se Chanceler. Quero mata-lo dignamente. As lágrimas nos olhos tingiam a visão do Governador cada vez mais enfurecido.

- Alexandre…não o faças! – A voz trémula de Lúcia levantava-se com ela. Alexandre olhou-a de alto a baixo, o Chanceler ainda suspenso nos braços, enquanto a mulher e o coração parecia encher-se de novo com um renovado fôlego de esperança. Lúcia arrastou Miguel, debaixo de um corpo inerte, colocando-o no colo. O bebé chorava ainda, coberto de sangue.

- Bem…façamos de conta que nada se passou, Governador. Na sua vida já derramou demasiado sangue…- Cobardemente, o Chanceler tentava uma última vez demover Alexandre que o atirou para o solo, o corpo caiu em choque.

- Já pouco me interessa…saia à sua vontade. Mas não se esqueça, esta é a minha base!

A porta abriu-se e de um jacto saiu o poderoso Chanceler, por então vencido.

No chão jazia Clarisse. Perdida para sempre, vítima dos meandros daquele plano de insensatos.

Lúcia estava ainda inclinada sobre o seu corpo, fechando-lhe os olhos etéreos já baços.

- O que foste fazer? O que te deu na cabeça para vires a este quarto? Podias estar morta agora…só de pensar… – Sondava Alexandre com uma imensa ternura, baixando-se ao nível da mulher.

- Como me enojas Alexandre. Acabaram de mater a mulher a quem pagaste para parir o teu plano… A vida humana não te diz nada? – Perguntava-lhe a mulher, com o bebé nos braços.

- Coitadinho…meu pobre pequenino. Passaste por tanto já! Eu também sei o que é perder uma mãe… – Cantava-lhe Lúcia, enquanto se afastava do quarto rumo ao piso superior, beijando o menino e limpando-lhe o sangue da mãe que se lhe colava no rosto.

- Derramei demasiado sangue, mas o teu ainda vive nas duas… – segredava Alexandre a si próprio – Não importa…pensava para si. Foste, és, serás…a minha redenção.

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bluescorpion8 obrigada pelas palavras :rolleyes: . Significa muito para mim, porque adoro escrever e é sempre bom apreciarem o nosso trabalho.

Jorge...sempre "fiel" à Saga...obrigada ;)

E ainda bem que acharam que era a Lúcia que ía morrer porque era isso que queria...para aumentar o suspense :biggrin_mini2:

Parece que consegui :yahoo_mini:

Espero não desiludir, e que continuem a ler...

Obrigada e até para a semana :lol:

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Obrigada por lerem a minha "saga". Hoje mais um capitulo que considero emocionante e de viragem.

Espero que gostem. Boas leituras ;)

Rússia

Vyborg

Março 2013

Limites

Roma Orloff percorria as vielas desertas do porto de Vyborg de rosto fechado. Há um ano que as pessoas tentavam encontrar forma de sumir em debandada para fugir à Base. Mas ele mantivera-se sempre fiel às raízes. Se tivesse que morrer, pensava, não seria como foragido. Também há um ano que o remorso tomara conta de si, como um peso que não conseguia largar.

- Aquela agoirenta é capaz de tudo, até de algo tão pérfido como esta Aliança macabra. E deixou esta cidade quase deserta…já cá não mora ninguém. Acolhia-a em minha casa, dei-lhe um tecto e fiz dela aquilo que é… – Os olhos cansados do velho pescador buscaram o solo como consolo. Nada naquela cidadezinha, anteriormente acolhedora, o conseguia aliviar. A ponte branca do outro lado do porto cada vez mais gasta e sem ninguém para a consertar, as casas de telhados degradados pelo tempo como ecos de um vazio sideral. Tudo o chamava e culpava.

Chegou até à porta de um café. Abriu-a brutamente contra o pendente que ressoou melodioso. O dono, um homem alto e corpulento, bigode farfalhudo e rosto afável, cantava bem alto ao balcão uma música russa enquanto limpava o mármore cinzento. A cada esfregadela rítmica, levava o pano ao ombro para descansar enquanto olhava desinteressado o exterior a assobiar. Ao desviar a atenção para a porta percebeu a presença de Roma Orloff, vindo de mais um dia de pesca, e baixou o olhar para o balcão.

- Onde é que ele está? – Gritava Orloff, percorrendo com os olhos o café espaçoso e arejado com uma força demolidora.

Um menino de 10 anos, pequeno para a idade e franzino, saiu detrás do balcão e sentou-se nos altos bancos de madeira do café, duros e desconfortáveis.

- Sasha, não penses que por ser o teu aniversário te livras de apanhar! – Orloff contiuava aos gritos, perante o rapaz que lhe lançou uns olhos cinzentos infantis, mas desafiadores.

- Vou-me embora! – Disse-lhe Sasha, olhando o velho no rosto. – Não te queres despedir?

Roma sentou-se à sua frente no balcão, tentando seguir o pensamento da criança e não evitou um leve sorriso.

- Embora sozinho? És muito novo! Para onde? – Perguntava-lhe, mais em brincadeira do que com seriedade.

Sasha olhou-o mais uma vez, a medi-lo. Analisava cada vinco daquelas rugas tão acentuadas e respondeu, calmamente e baixinho, quase a segredar:

-…para a Base. Não vou sozinho. Aquelas pessoas todas também vão. – Sem coragem de olhar directamente para o amigo e companheiro daqueles 8 anos, a criança levantou os olhos para o tecto, admirando em fuga a bela clarabóia de vidro, debruada a madeira.

Roma não respondeu. O dono do café segurou-lhe o braço, ainda forte de lançar as redes ao mar e de tanto remar, prevendo no velho um impulso comum de pescador. Este levantou-se do banco, deixando para trás o balcão onde Sasha ainda se encontrava sentado, acompanhado do dono sempre em atenção. Espreitou a janela, rectangular e espaçosa, e reparou no grupo que partia escoltado por cinco homens de aspecto animal.

Sasha perdeu o medo de Roma e dirigiu-se a ele, quase sem pensar. O velho mantinha-se imóvel diante da janela a ver o grupo passar. Pousou-lhe a mão pequena e quente no ombro grande e falou-lhe, quase que como um pai:

- Vou para Abzu porque tenho lá o meu futuro. Não posso ficar aqui. Esta cidadezinha não me deixa respirar. Quero muito mais do mundo do que ele alguma vez me poderá dar…

Roma desviou a atenção do grupo que partia em êxodo para a Base de Abzu, fitando fixamente o menino "neto" que lhe retirou a mão do ombro, pousando-a no parapeito da janela, olhando deliciado o mundo a abater-se no exterior. O menino olhava deslumbrado os cinco homens com emblema da Aliança que guardavam o rebanho de pessoas que seguia tristemente o seu caminho rumo à Base. Não se importava com o sofrimento desenhado no corpo arqueado dos que se viam obrigados a partir para trabalho escravo.

- Eles sabem o que o mundo espera. Parece que o ouvem respirar. – Falava a criança, mais para consigo, antevendo o medo palpitar no peito do velho.

- Meu pequeno companheiro, tu és novo demais para imaginar coisas, sabes o que eles fazem aos secundários? Mandam-nos para as minas, Sasha! Eu não te quero nas minas…foi ela quem te pôs estas ideias. Eu sabia, desde aquele noite em que foste àquela casa…

Sasha retirou num ímpeto uma faca que se encontrava na mesa ao lado da janela, interrompendo violentamente o velho, bradando numa voz infantil:

- Não falas mais dela…tu não sabes nada da Valentina! Não me podes prender aqui! Olha para isto, tudo velho e degradado…como tu! – O dono do café precipitou-se por trás de Sasha levantando-o facilmente do chão e retirando-lhe a faca da mão pequena da criança. O menino continuava aos brados, como que a uivar, de olhos fechados de raiva.

- Não faz mal, deixa-o. Deixa-o ir. – Repetia fraco e sem certezas o pobre Roma.

O menino, finalmente solto, correu para a porta do café abrindo-a num arrebatamento inocente.

Saiu para a rua, já a noite ia escura, e juntou-se ao aglomerado que começava a jornada para a Base. Os olhos dos adultos fitavam-no inquisidores, mas o menino não se deixava arrear. Um dos homens da guarda reparou no corpo pequeno escondido entre os desenvoltos e dirigiu-se a ele, puxando-o para fora.

- Não são permitidas crias na Base, fedelho. – Falava autoritária a voz atirando Sasha para o chão. A criança levantou-se superior fixando o Capitão da Guarda.

- Eu não sou uma cria. E já posso trabalhar! Não fico aqui a apodrecer! Faço qualquer coisa, o que quiserem.

O menino reparou em Roma que saia desvairado do café no impulso de o proteger.

- Então não te importa que matemos o velho, pois não? – Indagou o guarda, corrosivo.

- Nem ele, nem ninguém nesta aldeia me interessa. São todos velhos e gastos. De útil, aqui não resta ninguém. O rosto do homem abriu-se num sorriso e deixou Sasha seguir com o resto dos escravos.

Roma olhava de longe o seu menino partir e sentia-se pequeno e tão frágil como se não tivesse paradeiro. Vagou pelas vielas sem ver e a ver tudo, a sentir tudo e a sorver cada momento pleno de dor.

Caos, degradação, catástrofe. O coração bombeava tão forte que mal conseguia respirar. Levou as mãos ao peito, num sofrimento penetrante e cavado.

- Até tu me trais e não deixas de bater. - Rumava cambaleante ao porto, ainda de mão no peito. O cheiro a urina, sangue e suor, antecessores fieis da morte que arrasava o seu povo, despertavam-lhe o vómito.

Caos, degradação, catástrofe, dor. Maldito o dia em que salvara da sarjeta uma menina…Maldito o dia em que ousara construir um mundo debaixo do seu tecto.

Caos, degradação, catástrofe, dor, remorso, revolta, culpa.

Chegou ao porto que tão bem conhecia e dirigiu-se ao seu barco de menino. Os pedaços de madeira branca e azul esperavam-no no cais. Puxou-o para a água com as forças que ainda lhe restavam. O vento da noite a esfregar-lhe o rosto de papel. Sentou-se e remou ao nada, o negro no horizonte obscurecendo-lhe os sentidos. – Perdi o meu filho, perdi a minha neta, o Sasha…nada mais me prende aqui. Esta terra usurpa mais do que o que cede! A mim roubou-me tudo! O mundo não é para mim…

Quando já não via terra, guardou os remos, deixando-se levar, à deriva. "As vastas larguras dos sonhos e vida, os anos vindouros prometem a nós. A nossa força vem da fé…assim foi, assim é e sempre assim será!". Cantava

Na praia apenas o lugar onde aportara um dia o barco de Roma demoraria ainda durante largos anos como restos da sua presença nessas terras. Dele e do pescador, apenas o curso encetado à noite no mar, poderia falar.

*****

Sasha viajou com o grupo durante meses pelas planícies áridas dos Montes Urais rumo a Abzu. As calças em trapos deixavam antever as pernas gretadas e os pés ulcerados que mal lhe permitiam caminhar. Pararam perto de uma povoação de nome Miass, onde os mandaram descansar enquanto a Guarda recrutava mais escravos.

Sasha sentou-se na borda do rio, lavou as mãos pretas de fuligem e de terra, inundando as crostas já secas. Procurava despir a camisola rota colada ao corpo suado e ulcerado, afastando-a do tronco com o máximo de cuidado, para conter a dor.

À sua frente, um homem de rosto encovado e esquelético caiu num estrondo, mesmo aos seus pés, num último espasmo de cansaço do físico consumido e esgotado. Sasha não se afastou, permanecendo ali, com o corpo morto a roçar-lhe a pele.

- Enterrem-no! – Ordenou friamente o Capitão da Guarda.

- …tu! Enterra-o! Não penses que vens como apêndice para aqui. – Disse-lhe o homem, apontando para o menino. Os olhos de Sasha permaneceram impávidos. Levantou-se e, enquanto todos de afastavam do cheiro da morte, a criança precipitava-se para os seus braços. Pegou placidamente na pá que lhe ofereciam e andou alguns metros até encontrar uma clareira onde cavou a cova, leito de morte. Depois, puxou sem emoção o corpo mole pelos braços até ao buraco. Com a pouca força que tinha, virou o corpo leve de lado, chutando-o depois para o fundo. Levantou-se e sacudiu a terra das calças. Naquele momento algo nele se quebrava para sempre. Todos o olhavam. – Como te chamas? – Perguntou-lhe uma voz vinda do grupo que o menino não distinguiu.

- Sasha, apenas Sasha. E, um dia, chegarei a Chanceler!

Sasha saltara destemido as fronteiras dos seus limites. Nada mais o deteria.

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Sul da Noruega

Kristiansand

Primavera 2013

Passagem

Um barquinho pequeno aportava numa cidadezinha pacata. O tempo estagnara numa cálida madrugada de Maio. Faltavam poucas horas para o dia raiar. No horizonte distinguiam-se já os primeiros pormenores de claridade. Pequenas margaridas amarelas nasciam na frontaria de uma casa de madeira avermelhada que se avistava do outro lado do ancoradouro. Ilya Andreev carregava ao colo uma menina adormecida embrulhada numa manta castanha já gasta. Saiu curvado do barquinho, virando-se para uma mulher de aproximadamente vinte anos, de cabelo loiro e curto. Os olhos verdes inchados de sono.

- Temos que nos despachar! Não tarda o dia nasce e podemos ser avistados. – Dizia assustado à jovem mulher, estendendo-lhe a mão com um sorriso, que a rapariga retribuiu docemente, segurando-a.

- Andamos como indigentes há um ano e meio. Estou farta Ilya, farta e cansada! Se a tivesses deixado com o velho não estávamos tão atrasados…mas não! Tinhas que trazer contigo a filha da Valentyna! – Nataliya desafogava a sua mágoa como se a repescasse do fundo daquele imenso mar que acabara de largar para pisar terra firme.

- É minha filha! Querias que a deixasse em Vyborg entregue à própria sorte? Pega nas tuas coisas e vamos embora…estás a perder tempo. – Falava Ilya calmamente.

Um homem entroncado de braços musculados olhava arrogante para Nataliya e Ilya, interrompendo abruptamente a conversa do jovem casal.

– Têm que me pagar por estes quatro dias extra. - Dizia ameaçador.

– Não tenho mais dinheiro… dei-vos tudo o que tinha. – Ilya fora apanhado desprevenido e a falsa fé. O homem permanecia de pé perante a figura do jovem que se debatia interiormente.

– Estou a ficar bastante “apoquintado”. - Explicou-se num russo pouco exacto. - Vocês não sabem reconhecer o trabalho arriscado de quem quer ajudar. Na vossa posição, é assim, já deviam saber pelos meses que andam fugitivos nos caminhos. Se não há dinheiro, ficamos por aqui. – Ripostava o homem ganancioso, vincado nos jovens e na pequena que acordara do sono e olhava aquela cena admirada e em dúvida.

Nataliya lançou um olhar cúmplice ao marido e levou as mãos ao bolso das calças de ganga coçadas, retirando um maço de rublos que estendeu prontamente ao homem.

– Esse dinheiro não me serve de nada… sendo assim, não “rista” outra “solição” a não ser chamar os meus colegas da Guarda. – Atirou as notas para o chão em desdém fitando seriamente Nataliya. Pegou de seguida num comunicador e falou apressado com uma voz que ouvia, apenas.

– Tenho aqui dois desertores…com uma cria. – Olhava com desdém para Ilya. Os olhos ateavam-se de contentamento.

– Se me deixarem trabalhar, eu posso pagar-vos mais tarde. – Respondeu Ilya numa última tentativa de escapar. Nataliya olhava-o zonza de pânico abanando a cabeça em desespero.

– Vais trabalhar sim, seu miserável. Mas para a Base. – Respondeu-lhe o homem, largando uma sonora gargalhada.

Naquele instante três guardas saíram como flechas do porto. Ilya poisou a filha no chão num total estado de choque. Um dos guardas foi ao seu encontro atirando-o violentamente para o chão, apertando-lhe a cara contra o solo com o pé, pontapeando-o. A menina desatou a chorar sendo prontamente acolhida por Nataliya que a apertou contra si, afagando-lhe os cabelos avermelhados.

– Pensavam que o nosso passatempo era ajudar secundários a fugir por pura compaixão? Tão útil ser-se crédulo! Este insecto já vai esmagado para a Base. – O guarda levantava o jovem ferido do chão encaminhando-o para um carro que se encontrava numa ruazinha acima do porto.

– Caem todos na mesma cilada. Que bela pescaria esta! – Achincalhava o homem enquanto via Ilya afastar-se com dois dos guardas e entrar no carro, lançando um olhar aflito à mulher e à filha.

– Não te preocupes…eu encontro-vos! Prometo-te. Nada de mal vai acontecer! – Gritou ainda, antes de entrar no carro que o levava a parte incerta. Nataliya baixou-se, de lágrimas nos olhos e peito apertado, segurando a pequena enquanto a voz do guarda se dirigia a si bruta e invasiva:

– Já estás a chorar? Mas ainda nem começamos a brincar… ora vamos lá ao pagamento… – Falou friamente aproximando-se da mulher e atirando-a para o chão, afastando insensível a menina com o braço. Lera ouvia, admiravelmente calada, os gritos de angústia de Nataliya, enquanto o homem lhe arrancava a roupa. Os olhos amendoados de Valentina, com a força interior da terra, fixos no corpo do homem por cima da jovem mulher. Um vulto aproximou-se do cenário por trás da criança e correndo em aversão.

– Larga-a. – Ordenou certeiro o Capitão. O guarda largou Nataliya que chorava caída no chão.

– Recompõe-te! E sai daqui antes que eu mude de ideias e te desfaça, que é o que mereces! Vai-te daqui enquanto ainda dou valor à tua vida! – O guarda saiu a correr do porto e o Capitão agarrou a rapariga ajudando-a a levantar-se. Ela fitou-o em dúvida e amedrontada, enquanto tentava compor a roupa. O homem percebeu e serenou-a, falando-lhe num tom suave, muito diferente da autoridade com que repreendera o outro.

– Eu também tenho…tive…mulher e filhos. – E acredito que todos os sacrifícios valem quando temos uma vida para proteger. Somos todos obrigados a fazer o mesmo, mas nem todos gostamos do que nos dão a executar…

Nataliya conseguiu, mesmo a medo, esboçar um sorriso de gratidão à coragem daquele homem que lhe salvara a vida. A menina continuava de olhar fixo nela, longe e assustada, as lágrimas em queda calada, taciturna e muda num orgulho infantil. Nataliya correu para ela abraçando-a com carinho. Pegou na criança ao colo seguindo o Capitão da Guarda. A menina passou docemente os braços pelo pescoço de Nataliya dando-lhe pequeninos beijos de criança, deitando-lhe a cabeça no ombro.

– Lera, Lera…o que faço contigo? Para onde vamos agora?

*****

Haveria de voltar. Um dia. Quando a terra não tivesse fronteiras. Porque ela o tinha previsto e confiava nas suas palavras. Valentina, Valentina, eterno glacial, indiferente e distante, indefinidamente fora dos seus limites, tão sem alcance…chamo-te como se disso dependesse a minha vida…. Se me ouves, porque não chegas?

– Chegamos, levanta-te! – Ilya fora interrompido dos seus pensamentos saindo do carro puxado pelos dois guardas. Tinha chegado à Base. Caminhou certeiro com os guardas enquanto estes desbravavam caminho até ao nível inferior. A manhã já ia alta e Ilya teve que semicerrar os olhos para se habituar à escuridão do nível subterrâneo em que entrava. Um dos homens que guardava a entrada sorriu aos outros e olhou enojado para Ilya que até então não se apercebera do aparato que causava a sua condição física.

– Estás num estado lastimoso. Trata desses ferimentos, lava-te que ainda tens muito a fazer. Tens sorte. Normalmente vocês chegam aos bandos. A tua viagem foi mais calma… – Disse-lhe, encaminhando-o para uma pequena divisão parecida com uma cela, poisando no chão um saco cama e uma tigela metálica com água.

Ilya chegara ao incerto. Se aquele era o caminho que escolhera, já não podia dizer. Contudo, enquanto as fronteiras do seu ser abrangessem aquela ninharia de dor, seguiria para onde o remetessem.

O guarda fechou a porta do quarto do jovem e dirigiu-se ao seu posto na entrada, gatafunhando algo num caderno tipo agenda e escreveu um número no canto superior direito. Depois sorriu para si, orgulhoso do seu trabalho. Fechou a agenda, passando-lhe a mão pela capa de pele preta, como a um tesouro. Ilya sentou-se no chão, ao lado do saco cama. O ar ali era tão denso e húmido que se tornava quase difícil respirar. Gotas de suor escorriam pelo seu tronco nu. Pegou na tigela de água onde flutuava um insecto já morto. Rasgou um bocado de pano da camisola azul já rota e enfiou-o no recipiente, passando o retalho pelo rosto magoado.

– Quem disse que podiam trazer escravos para aqui sem passar pela enfermaria? Este tinha que ficar de quarentena. Pode contaminar os outros! Isto foi, no mínimo, irresponsável, guarda! – Disse uma voz segura de si, com sotaque de leste.

Ilya sorriu e poisou de imediato o bocado de tecido molhado na tigela de água, encaminhando-se para a porta. Já nada lhe doía. Seguia os passos no corredor que se aproximavam de si e o coração batia cada vez mais forte e compassado.

– Não pode passar, não pode. Isto é uma área restrita! – Gritava aflito o guarda.

– Seu idiota! Eu sou a Observadora do Congresso! Certamente que não quer que reporte a sua conduta inadmissível ao Chanceler…

O Guarda calou-se cabisbaixo e deixou-a passar, contrariado, seguindo-a pelo corredor.

– Não preciso de sombras, guarda. Vá para o seu posto e não se coloque em mais situações de risco, que esta já basta! – Falava-lhe, arrogante e severa, a mulher. O Guarda saiu para a sua secretária, deixando o caminho livre para ela passar. Valentyna Dornova respirou fundo e deixou-o perdê-la de vista até continuar caminho. Depois, seguiu para o quarto onde Ilya se encontrava. Dirigiu-se a ele devagar, quase como se precisasse de tempo para se recompor. Quando lá chegou, entrou serenamente no quarto onde o jovem já a esperava de olhos a brilhar.

– Ilya Andreev…será que me podes explicar o que estás aqui a fazer? – Disse-lhe a Observadora, inclinando-se para Ilya, falando no tom mais baixo que os sentidos do homem conseguissem perceber.

– Valya! Eu sabia que ias chegar …– Ilya sorria-lhe, sincero, do fundo da sua alma.

– Eu disse-te para evitares a Noruega…o que te deu, para te arriscares assim? – Interpelou ela severa.

Num impulso, Ilya puxou Valentina para si, mantendo-a colada contra o seu peito, a sentir a sua respiração ofegante de encontro ao seu. – Vim ver-te! Todos estes anos sem ti… Já estava a dar em louco.

– És um verdadeiro inconsciente! Como te atreves? – Gritava-lhe num tom quase inaudível, Valentina, evidentemente fora de si, fixando-o nos olhos. – Larga-me ou chamo o Guarda…

– Chama…tanto me faz! Seria o paraíso morrer perto de ti… – Espicaçava-a o jovem ainda de sorriso no rosto, mantendo o corpo de Valentina preso ao seu.

– Não me tentes Ilya… – Valentina desviou os olhos do homem, fechando-os de seguida, como se um pesar penetrante se cravasse nela, desistindo de tentar soltar-se. Levou a mão ao bolso do casaco grená da farda e apontando-lhe uma arma, proferiu em toda a sua corrosão:

– Então, que assim seja. Ainda bem que me facilitas as coisas. Se é o que queres, escolhe Andreev, diz-me onde acertar…

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Ora cá vai mais uma Saga retirada directamente da naftalina do meu pc :laugh_mini:

Vamos lá conhecer um bocadinho mais as motivações dos personagens...

Então o que terá acontecido ao Ilya? Apostas?

Obrigada a todos os seguidores. Mesmo!!! Boas leituras ;)

Risco

Ilya olhou-a assustado, de olhos escancaradamente abertos e enterrados nela, sem expressão.

Valentina disparou à queima-roupa mantendo os olhos cerrados. Ilya soltou um pequeno gemido, fino e fraco. Agarrou-se à parede, tacteando com as mãos o cimento frio. Valentina afastou-se, olhando friamente o jovem entorpecido.

– Como foste capaz? – Questionou-a incrédulo, antes de cair no solo num estrondo surdo contra ao chão.

Valentina saiu disparada do quarto-cela percorrendo o corredor com toda a segurança, parando diante do guarda:

– Vim buscar o registo das entradas. – Falou, retirando-lhe a agenda que guardou debaixo do casaco. – Há um morto no quarto. Recolham-no. – Retorquiu, perante o olhar atónito do guarda que permaneceu sentado enquanto ela se afastava.

Subiu apressada as escadas de metal do nível inferior agarrada ao corrimão. Entrou num gabinete e fechou a porta atrás de si. Abriu o casaco da farda, retirando o caderno que abriu na última folha, arrancando-a. É desta que dou cabo de mim...

Compôs a saia da farda e voltou a apertar o casaco. Uma voz ao fundo chamou-a, imperativa. A mulher conduziu-se, calma e plácida, ao escritório do Governador de Abzu. Levou a mão à porta, batendo por duas vezes os nós dos dedos no metal espesso e frio, aguardando permissão para entrar.

– Trouxe os registos para assinar? – Indagava um rosto averiguador que a investigava de alto a baixo. Valentina estendeu-lhe a agenda, calmamente alerta, o raciocínio pulando ao máximo de velocidade que conseguia actuar. Olhou para o relógio que marcava dezoito horas.

O Governador, sentando na secretária de vidro fosco, analisava distraidamente os dados da agenda. Valentina deixou-se poisar na cadeira em frente por breves instantes. O Governador assinou a agenda e passou-a desinteressado a Valentina que esboçou um sorriso, pedindo permissão para se levantar.

– Não me diga que já vai? Não imagina os tempos que passamos aqui sozinhos nesta Base, sem ninguém agradável com quem partilhar ideias. Não conseguirá conceber como é solitária a vida de Governador.

Valentina apertava imperceptivelmente a agenda de encontro o casaco, olhando o relógio. Dezoito e cinco… o coração acelerado, ouvia apenas reverberações do Governador.

– Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer tudo o que fez pela Aliança. Se não fosse a sua preciosa colaboração, nunca conseguiríamos decifrar aqueles seres quando encetaram contacto connosco. Já deu muito a esta causa.

Valentina sorriu-lhe agradecida, erguendo o rosto para o fitar.

– É bom perceber que vai semeando os seus discípulos… – Respondeu-lhe em elogio. – Agora, se me permite, gostava de entregar os registos antes da mudança de turno. Dezoito e dez …o corpo de Ilya na cave…

Valentina desceu até ao nível inferior, abrindo a porta, pulando as escadas a alta velocidade. Dezoito e quinze …

Ainda nenhum guarda se encontrava no posto. Poisou novamente a agenda na secretária do guarda. Já está. Nunca por cá passou …

Dirigiu-se à enfermaria, onde se encontrava o corpo de Ilya Andreev estendido numa marquesa de inox, totalmente nu, apenas com a etiqueta no dedo grande do pé esquerdo com a sua identificação. Aproximou-se e tocou-lhe com o dedo indicador na pele rija. Trancou a porta por dentro, retirando de uma vitrina um pequeno frasco onde inseriu uma agulha que espetou friamente em Ilya. Encostou-se a uma parede de frente para a marquesa onde se encontrava o jovem e esperou. Poucos segundos depois, Ilya dava sinais de si com uma pequena tosse rouca. Abriu os olhos e deparou-se com a mulher, inesperadamente plácida, diante de si.

– É adrenalina. Não te mexas. Estiveste em paragem cardíaca. – Disse-lhe, mantendo-se imóvel, contra a parede. Valentina dirigiu-se a ele, ajudando-o a sentar-se muito devagar.

– Temos pouco tempo. Vais ter que conseguir caminhar. – Dizia-lhe enquanto buscava umas roupas para o vestir. Saíram os dois, Ilya cambaleante agarrado ao ombro de Valentina, percorrendo o corredor da Base. No exterior, a noite já caíra bem negra. Com o recolher obrigatório, o caminho encontrava-se vazio. Valentina deitou Ilya no banco traseiro do seu carro e conduziu-o por um carreiro de terra batida para fora dos limites das minas da Base. Passaram por uma cancela que se abriu automaticamente. Ao fundo distinguiam-se várias casas iguais. Valentina parou o carro em frente a uma delas e retirou Ilya com cuidado. Ilya entrou directamente para uma sala fria e desconfortável, apenas com um maple de cabedal castanho, uma mesa de centro e uma estante com livros velhos ao lado de um candeeiro de pé. Valentina encaminhou-o para o único quarto da casa, deitando-o na cama de madeira escura. Ilya permanecia sisudo, encostado à cabeceira da cama, sem fitar Valentina.

– Achas que era capaz de te matar? Há quantos anos me conheces Ilya? – Indagava, procurando uma resposta no jovem que levantou o rosto para ela.

– Há vinte anos que me pergunto se alguma vez te conheci…és capaz dos maiores absurdos pela tua causa. Mesmo assim sabia que vinhas…porque precisava de ti.

Os olhos de Valentina brilharam e virou-se para Ilya, enternecida.

– Quero que te mentalizes que não intervirei sempre providencialmente no teu caminho. Há-de chegar o dia em que não poderei estar lá.

– Porque não segues o meu caminho, Valya? Ainda vais a tempo… Eu sou o teu caminho, não saio daqui. – Ilya estendia a mão à jovem mulher que baixou os olhos, já mareados.

– Eu sou a agoirenta Ilya. O meu dom extorque-me o caminho… Estou a arriscar a vida por ela…por ti! Se não vês isso, então não sei porque raio ainda pensas que precisas de mim.

Sem dúvidas ou interrogações, Ilya puxou Valentina e fixou-lhe os lábios nos dela. Ela estremeceu, retribuindo o beijo em todo o expoente do seu desejo. Tiraram a roupa e deixaram-se cair no chão frio do quarto. Fizeram amor, precisados um do outro, num anseio que só explicam as entranhas da autêntica paixão. Beijavam-se, mordiam-se, tocavam-se percorrendo todos os recantos um do outro, perdidos nas planícies dos seus corpos. Um só e indivisíveis em que, por um momento, os corpos perdiam o pronome. Era a terra precisada de ar numa aliança perfeita de elementos, numa comunhão constante de impressões. No final, já consumidos pelo cansaço, Ilya deitou a cabeça de Valentina contra o peito e segredou-lhe, depois de lhe trincar o lóbulo do ouvido:

– Preciso-te. – Disse-lhe, descendo para a sua cintura e beijando uma pequena cicatriz no abdómen de Valentina.

– É a lembrança de quando ela nasceu…o meu maior sonho. A Valéria precisa de ti! Segue o teu caminho, eu escolhi o meu. Não há volta a dar. Talvez um bocadinho de mim siga contigo e permaneça aceso em ti e vivo nela. – Respondeu-lhe carinhosa a jovem Valentina.

Nessa madrugada Ilya dispensou para sempre a necessidade da presença de Valentyna em si. Irmãos, amigos, marido e mulher, amantes, cúmplices, e companheiros nunca mais se voltariam a ver. A vida passara por eles sempre demasiado breve, sempre sem tempo, numa conspiração das horas. Valentina levantou-se sem estranhar o caminho que a vida mandava Ilya seguir. Outras formas e outras rotas fariam dele um novo ser. Na mesa de centro da sala apenas um bilhete escrito à pressa:

Obrigado por me dares vida. Se o teu dom existe, então saberás que isto estava para acontecer. Amo-te, mas não vou ser eu a prender a sofreguidão da tua vida. Dou-te um novo sopro e sigo o meu rumo.”

Valentina levantou levemente os olhos do bilhete, guardando-o na estante. Nela endureceria a alma de terra que a água não alcança fechada num núcleo da vida em permanente crepitar. As lágrimas corriam-lhe interiormente e provisórias, nada mais que excertos dos caminhos percorridos.

Dirigiu-se às minas da Base decidida e determinada. As portas fechavam-se atrás de si, tal como em todos os outros dias. Os passos continuamente certos e maquinais. Persistiria no vazio, rumo à estrada.

Em Ilya viveria a partir de então um enorme vazio cor de sangue. Carregaria nos olhos o peso de tudo o que sentia preso em si. As palavras para sempre desfeitas em silêncio. Como se a vida fosse, ou passasse a ser, um suplício mortal da espera, onde seria sempre tarde demais para soluçar.

O Governador olhava à distância, na sua sala envidraçada, a entrada de Valentina na Base. Os cabelos ruivos atados em permanente desalinho. Farejava-lhe o sofrimento contido. Continha a agenda do dia anterior na mão, olhando o sítio da folha rasgada.

– Valentina, Valentina…não pode fazer tudo sozinha. Eu vou ajudá-la. Um dia o seu nome ficará escrito na história… Esta saga é apenas um risco que ambos temos que aceitar.

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Obrigada, K3o4 e Catita, pelas palavras :$

Fico muito contente por gostarem do que escrevo e como escrevo. É muito importante que gostem, afinal é isso que dá sentido a qualquer hitória/escritor.

Catita, quanto a publicar o que escrevo, não sei se haveria alguma editora interessada em apostar numa história como esta. Afinal a crise chega a todos...e não sei se é "material" vendável...

Já fico muito contente de a poder partilhar com vocês, ao fim de alguns anos esquecida no pc :biggrin_mini2:

Ora cá vai mais uma "Saga" a toda a velocidade! Obrigada e boas leituras ;)

Noruega

Kristiansand

Maio 2013

Conquista

Nataliya estava sentada no sofá de uma pequena cabana perto do porto. Olhava para Lera que brincava no chão, sentada numa carpete vermelha. O Guarda entrava com um saco na mão.

– É melhor despacharmo-nos. Temos que nos fazer à estrada. Ainda não me apresentei. Ontem o dia foi um quanto apressado. Chamo-me Elias Bruun. – Disse enquanto poisava o saco e olhava a menina brincar, compenetrada.

– É muito bonita a sua filha. – Proferiu cativado.

O primeiro impulso da jovem foi desfazer o equívoco e desabafar que aquela criança presente na sala e por quem fazia tantos sacrifícios não era sua. Mas foi interrompida pelos olhos da menina de cinco anos que a focavam, em aguda atenção. Por mais parecida que fosse com a agoirenta, sentia por ela um afecto puro e sincero. Estaria ela a aprender a amá-la? Mesmo representando ela tudo o que representava? Calou a sua voz mais íntima e respondeu ao guarda, numa verdade interior. – …Sim, é muito bonita a minha filha.

O homem virou costas olhando o porto no exterior enquanto arrumava uns mantimentos no saco que colocou ao ombro. Dirigiu-se ao exterior onde se encontrava uma carrinha de caixa aberta estacionada. Nataliya chamou Lera que ainda brincava com umas loiças no chão, e vestiu-lhe umas calças caqui e uma camisa bege que lhe ficava grande e larga, dando umas dobras na manga, soltando-lhe os cabelos ruivos do colarinho.

– Porquê que não posso levar o vestido? Não gosto nada desta roupa…pareço um saco de batatas! – Protestava Lera, amuada, olhando para Nataliya de beicinho, numa birra de criança. Saiu disparada para a frontaria da cabana pedindo ao Guarda para a ajudar a subir para a carrinha. Já sentada, olhou para Nataliya e deitou-lhe a língua de fora, numa careta.

– ´Tás a ver? Cheguei primeiro que tu, molengona! – Retorquiu-lhe, provocando o riso no Guarda e em Nataliya que baixou a cabeça, momentaneamente divertida.

– Tem um génio forte a pequena… – Respondeu Elias, risonho.

Nataliya subiu também para a carrinha e sentou-se, apoiando a cabeça na janela. Ao lado Lera não a encarava, ainda zangada.

– É bom ser-se criança. Na idade dela não nos preocupamos com o que poderá acontecer. – Dizia o Guarda. Era um homem relativamente jovem, de cabelo castanho claro que pendia da boina da farda. – Também tenho dois filhos e sabe-se lá o que é feito deles. O mais novo está para fazer doze anos. Perdi tanto da vida deles…

– Mas dá vida a pessoas como nós. E só temos que lhe agradecer o que está a fazer. É um risco muito grande pôr em causa a sua vida a favor da dos outros. – Respondeu-lhe reconhecida a mulher, enquanto o homem continuava o caminho, fixo na estrada.

– Quando me obrigaram a escolher escravos para as Bases, não sabia até onde seria capaz de levar a tarefa. Homens que escolhem outros semelhantes, quem somos nós para isso? Recrutar escravos, outros seres humanos que são forçados a seguir-nos esgotados e a pé, sem sequer terem tempo para parar e descansar. E ainda somos forçados a abater os mais fracos ou doentes. Porque temos ordens de não deixar ninguém para trás. Cada pessoa que tinha que matar, fazia-me morrer cada vez mais por dentro. Sentia-me sujo. Não consegui! Arranjei maneiras de salvar, a patrulhar as fronteiras em busca de fugitivos para ajudar.

Nataliya permanecia com a cabeça contra o vidro da carrinha e fechou os olhos, acabando por adormecer. Foi acordada bruscamente por Elias que a mandou descer da carrinha para esconder-se na carroçaria com Lera. Tapou-as com uma lona branca, voltando a seguir o seu caminho. Poucas horas depois o carro parou na berma de uma estrada alcatroada, ladeada de arvoredo. A noite tinha já caído no horizonte. O Guarda ajudou-as a descer da carrinha e acompanhou-as até a entrada de uma estação de comboios vazia. Elias chegou-se à pequena afagando-lhe os cabelos, poisando o saco com mantimentos no chão.

– São 22 horas. Por volta da 1:00 hora, passará um comboio, que têm forçosamente que apanhar. Perguntem pelo Viko. – Quando os encontrarem, mandem um beijo por mim aos meus filhos e à minha mulher… – Disse Elias dirigindo-se à saída, de onde acenou.

Nataliya dirigiu-se à porta, trancando-a, voltando para perto de Lera, sentada num bando de pedra de estação.

– Ainda estás zangada comigo? – Perguntou-lhe, trocista, de sorriso nos lábios.

– Estou com muita fome, não consigo estar zangada. Não vais dar-me de comer? – Interrogou a menina, aninhando-se nos braços da mulher. Nataliya baixou-se para abrir o saco aos seus pés, passando-lhe umas bolachas, que a menina trincou prontamente. – Preferia Mánnik *. – Respondeu-lhe Lera, que mesmo assim, comia esfomeada.

Uma patrulha de guardas passava de carro na estrada quando avistou Nataliya e Lera na estação. Dois saíram a correr, atravessando a linha e dirigindo-se a elas.

Nataliya levantou o rosto do saco, deparando-se com dois guardas ameaçadores à sua frente. Elias tentava, em desespero, abrir a porta da estação, trancada por dentro. Os homens dispararam sobre ela, que os olhava, assustada. O sangue espirrou para a face e roupa de Lera que fugiu, em pânico, a esconder-se no mato. Nataliya caiu no chão, a gemer, arqueando de dor. – A miúda fugiu para a mata. É impossível encontrá-la com esta escuridão. – Disse um dos Guardas, saindo apressado, seguido do colega. Elias estava ainda no exterior, quando viu aproximar-se dois vultos conhecidos.

– Capitão da Guarda? Está acusado de deserção e alta traição contra o Governo da Aliança. – Anunciavam enquanto procuravam imobilizá-lo.

– Estou-me nas tintas para a Aliança… os vossos dias estão para acabar! – Proferiu enquanto buscou com a língua um comprimido, escondido na boca, que trincou caindo imediatamente inerte no solo, deitando uma espuma transparente. Os dois Guardas entreolharam-se em dúvida, correndo rapidamente para o carro. Lera deixou-os seguir caminho e correu assustada para Nataliya, caída no chão. Sentou-se no solo colocando a sua mão miúda sobre a da mulher, que a apertou, o corpo dobrado a estremecer de agonia.

– Foge daqui Lera. – Disse-lhe antes de fechar os olhos e largar a mão da pequena que desatou a soluçar, ao lado do corpo que não dava acordo de si. Retirou as mãos de Nataliya, reparando em horror no sangue que as tingia. Levantou-se aflita, os soluços infantis cada vez mais fortes, a esfregar a mão de encontro a camisa e correndo aos gritos e sem rumo por todos os cantos da pequena estação. Tentou saltar a linha para chegar ao outro lado, mas era pequena demais para conseguir. Depois dirigiu-se à entrada tentando, em vão, abrir a porta sem forças para a destrancar. Estava presa na estação, sozinha e sem ter para onde ir, tendo como companhia um corpo apático no chão. Voltou a sentar-se ao lado de Nataliya. Falava com ela em busca de conforto.

– Acorda! Não disseste que não podíamos adormecer até ser uma hora? Acorda molengona! – Gritava a menina, à espera de resposta. Nada. Nataliya permanecia imóvel no chão, o rosto lívido de encontro o solo frio de pedra. – A menina puxou pelo braço da mulher que caiu, pesado na sua perna. Arrastou um pouco o corpinho pequeno e puxou o saco de onde retirou uma manta.

– Está muito frio, podes-te constipar. – Disse meigamente a Nataliya cobrindo-lhe o corpo, aproveitando para se cobrir também. – Porquê que não me respondes? Desculpa ter-me zangado contigo…eu só queria o vestido… Tenho medo ´taliya...Lera soluçava bem alto. Tremia de pânico e de frio. Olhava para o relógio sem saber como se orientar. Mantinha os olhos fixos na linha à espera de ver o comboio passar. Coçava os olhos insistentemente, para não se deixar vencer pelo sono. Uma voz, doce e conhecida, ecoou-lhe na cabeça, como se a ouvisse por toda a estação.

Levanta-te Valéria. Vais ser uma menina crescida e aprender a lutar…

A menina procurava com os olhos todos os cantos da estação à procura, mas no seu espírito só aumentava a dúvida. – Mamushka? – Perguntava, com um enorme sorriso. Está tudo bem, não vai acontecer nada, não chores, meu amor

Lera acenava com a cabeça, dizendo que sim, segura que Valentina a via. Adormeceu com a cabeça de encontro o banco da estação. Pouco faltava para as 01:oo quando acordou estremunhada. Um comboio cinzento parou na linha da estação de Kristiansand. A menina permaneceu sentada no chão ao lado de Nataliya enquanto a imagem do comboio se definia no seu olhar. Levantou-se e acenou, aflita, fazendo sinais. Um homem, alto e forte, saiu de uma carruagem correndo em direcção a ela.

– Estão aqui! – Gritava enquanto se dirigia a Nataliya, tomando-lhe o pulso. – Está muito fraca, mas viva. Não sei como conseguiu sobreviver, perdeu muito sangue. – Consegue ouvir-me? Eu sou o Viko. E estes são o Marius e a Jiya. – Disse a Nataliya, apontando para um homem de cerca de trinta anos, de barba rara e cabelo cor de palha e uma mulher de tez negra de olhos tão escuros como o cabelo, que pegou na menina ao colo. Viko deitou Nataliya numa maca, que colocou numa fila de assentos do comboio. Lera acercou-se dela, poisando-lhe levemente os lábios na testa.

– És a minha mamushka. Vais ficar boa, ´taliya. Nada nos vai acontecer. Jiya puxou-a docemente para si, retirou-lhe a roupa ensanguentada e limpou-lhe o sangue do rostinho miúdo e das mãos. Depois sentou-a num dos assentos almofadados ao seu lado e, calmamente, deitou-lhe a cabeça no seu colo. – Para onde vamos? Indagou a menina, em toda a sua curiosidade infantil.

– Para casa. – Respondeu-lhe Jiya. Viko aproximou-se da mulher, deixou-se escorregar para o assento ao seu lado. Lera dormia, finalmente tranquila.– Conseguimos. Já as temos a salvo, mas perdemos o Elias. – Dizia preocupado a Marius que levou as mãos à fronte.

– Isto foi uma cilada. Resta saber de quem…apenas nós sabíamos… – Proferiu Jiya, em conjuração.

– Vamos ter que reunir o Conselho… – Anunciou Marius, num tom austero e ponderado.

O comboio fazia-se às linhas a alta velocidade, devorando o mato. Conquistara mais um pedaço da rua escura a que o domínio involuntário os atirara. No horizonte, o monte, o planalto adormeciam ali, no escuro e dentro de cada um deles. Como uma luz de esperança que brotava invisível, numa forma de consolo e segurança. Não era complicado seguir em frente em busca de salvação. Naquele caminho isolado ainda encontravam forças para lutar contra um fantasma real, que apenas os trilhos daquelas longas horas deixavam antever.

* Nota: Pudim russo feito de sêmola e fruta servido como sobremesa.

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QUOTE(magg @ 29-Apr-2009, 19:27) <{POST_SNAPBACK}>
Catita, quanto a publicar o que escrevo, não sei se haveria alguma editora interessada em apostar numa história como esta. Afinal a crise chega a todos...e não sei se é "material" vendável...

Eu sei que é dificil publicar um livro, mas se não tentares então será mesmo impossível...

Não custa nada tentar, tentar, insistir... eu sou da mesma opinião da Catita, do k3o4 e restantes, tens muito talento para escrita! Na minha opinião, melhor que muitos que já publicaram livros.

Digo isto, porque é dificil alguém me cativar para ler, mas tu consegues!

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  • 2 semanas depois...

Cá estou com mais "Saga". Este capítulo mostra mais um pouco dos personagens para ajudar a compreender os seus rumos, decisões e atitudes.

Obrigada a todos que lêem os longos capítulos da minha história. Boas leituras ;)

Base de Edín

Sauzesco

Maio 2013

Raízes

Não podemos esquecer as origens. Alexandre Meireles Almeida de Albuquerque, não negava as suas. Nascera numa terra cujo solo se via regado de sangue. Desde as montanhas maias de onde se ergue imponente o Pico Victoria até às planícies costeiras, planas e pantanosas, do norte, Belize achava-se maculado de vermelho. A alma vaga do antigo Barão congregava a génese de tudo. Nascera, por engano, em Belmopan, numa rua pobre do bairro de San Martín. Toda a sua vida procurara um propósito que lhe guiasse a existência. Tinha 15 anos quando este lhe surgiu, como um desígnio, na primeira vez que matou um homem em nome da Revolucíon. Estávamos no glorioso ano da Independência, em 81. Ainda tremeu no primeiro golpe da catana, ao senti-la deslizar pela cabeça, mas depois, engoliu em seco vendo os espasmos do corpo moribundo que finava em convulsão até expirar, já hirto e inerte. Olhou o sangue que jorrava do cadáver decepado e, como se o seu corpo se adaptasse, sorveu com prazer o odor a sangue quente. Tomou o pulso da morte e sentiu que nunca mais conseguiria parar. Era o apelo da seiva da vida, a domar-lhe os instintos. Para ele não havia rostos, apenas alvos a matar pela causa revolucionária. Esteve ao lado dos Estados Unidos quando varreram sem piedade as tropas inglesas do seu território. Foi um dos seus apelos do sangue que o cruzou com Spencer Johnson, o novo Governador-Geral. Olhou para o inglês e sentiu a raiva nascer-lhe das vísceras, irracional. Não voltariam a usurpar o seu solo. Tinha que matá-lo, era a sua missão. E uma vez iniciado na arte de tirar vidas, nada mais pára o espírito sôfrego. Em Abril de 94, quando assassinou barbaramente Johnson, a sua mulher e três filhos, para ele matar era já um acto natural, parte indeclinável de uma vida dominada pela fúria. Apenas duas escaparam…

Eram as raízes do Barão que cunhavam os seus passos enquanto percorria o espaço que o separava da mulher, imerso num não sentir, rasto inefável dos dias, espias do cheiro intemporal da memória. Percorria a pequena cidade apelidada de Sauzesco, com as suas casinhas todas iguais, parte dos últimos ecos da presença humana na terra. Chegou à sua casa, onde entrou, placidamente. Subiu degrau a degrau a escadaria, tão calmamente como o seu espírito guerreiro. Abriu impetuoso a porta do quarto da mulher e olhou-a, de relance. Lúcia estava sentada no canapé vermelho fingindo não o ver. Alexandre aproximou-se, poisando a mão, grande e brava, no sofá, incapaz de tocá-la.

– Tu ainda não me perdoaste o que fiz, pois não? Tinha que ser feito, minha querida. Acredita que eu não estou a ficar mais novo, se isso te serve de consolo. E esta era a minha última oportunidade de prolongar-me eternamente pela história e perpetuar-me no tempo. O meu nome nunca surgiria na lista de reprodutores do Império, tal como o teu…lembrei-me apenas de conduzir as coisas a meu favor. Usei uma reprodutora das listas do Império, a que vivia mais perto. Ofereci-lhe segurança, e uma vida confortável. Lúcia interrompeu-o com uma impetuosidade que brotava da sua imensa mágoa e frustração, consumida pelo peso de uma vivência de desamor.

– …tal como fizeste comigo. Promessas que não pudeste cumprir. Usas-nos como objectos a que depois não sabes que fim dar. Vais fazer o mesmo com o Miguel?

Alexandre sentou-se no lugar deixado vago pela mulher. Lúcia procurou-o de esguelha, clareando a voz, perguntou-lhe em desdém.

– …Diz-me Alexandre. Tenho esta questão encravada na garganta. Quem disparou o tiro? – Lúcia jogou a pergunta, dura e amarga, do âmago do seu ser. Ficou parada, a olhar Alexandre que a fitava também. Este levou a mão direita ao queixo, pensativo, enquanto passava a outra pelo veludo do canapé, sentindo o seu toque macio de encontro a pele. Depois, como se esperasse todo aquele tempo para o dizer, recuperou fôlego e respondeu, seguro e desafectado:

– … fui eu! – Levantou-se do divã e, sem mais esclarecimentos do seu acto, arranjou o casaco e dirigiu-se a Lúcia que se afastava dele, horrorizada. Parou junto dela que, estupefacta, o olhava com cada vez mais desprezo.

– Mataste-a? Para mim basta! Acabou Alexandre! Mataste a minha família, mataste a Clarisse…tanto, tanto sangue. Deixa-me ir embora, por favor!

Lúcia tentava vislumbrar-lhe um ponto ténue de remorso que pudesse despontar tímido do seu ser. Mas foi prontamente embaciada pelos gritos de Alexandre que a olhava alarve, gritando como um louco.

– Eu sou rei e senhor do teu destino. Mais ninguém! Puseram-me à prova…e venci! infindáveis vezes, vezes sem conta! Mas acredita, mais ninguém me vai pôr a teste! Muito menos tu! – Praguejava em lengalenga enquanto se agitava de um lado para o outro no quarto. O rosto vermelho de Alexandre denotava toda a cólera até então latente.

– …não sais daqui, nem mesmo para morrer, entendes? Tens comigo uma dívida de sangue. Eu fiz tudo por ti, sua ingrata! Salvei-te a vida, a ti e à tua irmãzinha! É assim que me agradeces? Nunca vais mudar, pois não? Devia ter acabado contigo como acabei com aqueles ratos dos ingleses…uns ratos…são todos uns ratos… – Rugia o Governador Os lábios cerrados e comprimidos, os olhos esbugalhados declaravam uma alma fora se si.

– …eu também sou inglesa, Alexandre! Uma Johnson. Manda-me depressa para perto do meu pai.

A mão de Alexandre encaminhou-se exaltada e violenta contra a face de Lúcia, incapaz de resistir. A mulher caiu no chão, desamparada. Deixou-se permanecer ali, caída, como se o solo fosse uma breve forma de abrigo. Sentia a têmpora latejar, ritmada com o seu coração. O Governador retomou a pose superior e austera, a ele tão típica. Como se nada se tivesse passado, baixou-se e de joelhos no chão, dirigiu-se a Lúcia num tom baixo e suave, enquanto lhe limpava com um pano o sangue que escorria.

– Desculpa, minha querida, mas não te posso deixar ir…

Lúcia, já sentada na borda da cama, conseguiu antever a criada que passava no corredor com um bebé de seis meses ao colo que palrava algo. Alexandre olhou-o, orgulhoso da sua obra.

– Como está grande e bonito o nosso filho. Ele é um verdadeiro Almeida de Albuquerque! A minha continuidade, de biótipo perfeito! Sem falhas! Nascido para liderar o Império, como senhor da Aliança. – Proferia enlevado o Governador.

– Vejo que tens tratado bem dele. Como uma verdadeira mãe! – Continuava Alexandre, em total alienação.

– Há coisas que são intrínsecas a qualquer mulher…isso não faz de mim mãe dele… – Respondeu-lhe Lúcia, secamente. Mantinha-se indiferente, fixa no corredor. Olhava Miguel como se parte do asco e aversão que sentia por Alexandre se passasse também para aquele pequeno ser que os fitava com os seus imensos olhos celestes. O rosto de Alexandre naquele ser, a carne daquela carne num exercício de genética perfeita onde o sangue de Alexandre não cessaria de correr. Lúcia levantou-se, de olhos baixos no pequeno, quase que em perdão.

Alexandre dirigiu-se à porta, voltando-se para a mulher, ainda de olhos no solo. Saiu, tal como entrou, no silêncio conspirado das horas de abandono. Nas minas de Edín, entrou superior, como em todos os outros dias e, como se houvesse tacteado em Lúcia todos os seus temores, anunciou espectral que deixassem as cancelas da saída da cidade abertas, sem nenhum guarda perceber a intenção do Governador que se afastava, de sorriso nos lábios. Ela vai querer fugir…

Lúcia aproximou-se de novo do seu velho canapé vermelho, onde há tantos anos atrás, se sentara a sua mãe, Valéria Garza. Retirou do forro uma lata velha de bolachas que abriu com ternura. Com cuidado, como se pegasse em algo frágil demais para partir, retirou umas fotografias descoloridas pelo tempo, e desbotadas nos cantos. Sentou-se. A vida era pesada demais para os olhos a cruzarem levianamente. Pegou num dos pedaços de papel já gastos pelo tempo. Era uma fotografia tirada num belo pôr-do-sol tropical. Nela desenhava-se um homem de expressão bondosa e feliz, de cabelos ruivos pendentes num teimoso desalinho, abraçado a uma mulher, de grandes olhos outonais, que lhe sorria plena, com um bebé nos braços. Lúcia passou com ternura os dedos nas figuras dos pais, a acariciar cada contorno dos seus traços. As lágrimas caíam-lhe como cascatas que pulavam no seu rosto de cera. Continuou a percorrer a imagem como um vício, a alma ardente presa a cada pormenor. Ao lado direito de Spencer Johnson, dois rapazes com uniformes do Colégio Militar sorriam despreocupados, e duas meninas de cabelos ruivos ondulados faziam caretas para a objectiva. Fora a última fotografia que tiraram antes do exílio. Os olhos verdes de Lúcia fecharam-se na dor da lembrança que remoía. A têmpora latejava ainda, e Lúcia tocou-lhe com o dedo, limpando os restos de sangue seco. Levantou-se e só aí tomou a sua decisão. Nunca mais deixaria Alexandre Albuquerque ter o controlo da sua vida e domar-lhe as decisões. Entre eles, nada mais havia que duas mãos afastadas, num lento desviar de cada dia. O vazio do exterior, por mais que a empalidecesse, não seria suficiente para detê-la nas margens daquele inferno mascarado de vida. Decerto o destino não tinha que lhe ser tão desamigo.

Deixou a noite cair, e desceu em bicos de pés as escadas. Abriu a porta da rua, descalça, para não fazer barulho. Sentia a terra quente do solo beliscar-lhe os pés e oscilava de nervos. Os músculos comprimiam-se e fechava as mãos, apertando com força todos os seus sopros de força e de esperança. Caminhou algumas horas até chegar às cancelas, que se encontravam abertas. Hesitou. Conhecia o caminho por ela já percorrido, mas perdia-se nas rotas. Porque para ela não havia saída. Tinha uma sombra cruel e corrosiva que lhe roubava a vida. Algo que a guardava trancada no fundo do seu trono de olhos cor de mar. Um cansaço, companheiro fiel das horas longas, que não a deixava avançar. Ao seu lado desenhou-se a figura esbelta de um homem que lhe poisou levemente a mão no ombro.

– Não faça isso. Lá fora não existe mais nada. Apenas um deserto ainda maior que esse seu ódio a esta Base. Volte para casa…eu levo-a. Fique descansada que mais ninguém vai ter que saber… – Disse-lhe a voz, impedindo-a de continuar.

Lúcia ouvia aquele som detrás das suas costas e pareceu-lhe um anjo que lhe falava do fundo do seu ser. Daqueles que Valentina lhe contava existirem antes de adormecerem. Olhou-o de lado e vislumbrou-lhe o uniforme azul de Guarda que perdia os traços no negro da noite. Reparou na barba rara e clara que lhe despontava do queixo e nuns olhos indefinidos na noite que a olhavam, impressionados.

Lúcia não lhe perguntou porque razão um Guarda de Sauzesco a tentava ajudar. Também não falou todo o trajecto em direcção a casa e ao limbo que a congelava em si.

Limitou-se a olhar o homem que a guiava com passos certos rumo ao porto que horas antes desprezara. Cansada, deixou-se adormecer ouvindo apenas a voz doce do guarda que seguia caminho.

– Durma bem, minha senhora… – o som penetrou-lhe nas entranhas antes de adormecer, aos primeiros raios de sol. As suas raízes lutadoras esvaíam o último sopro de memória, lento e certeiro, arrancando-lhe as fundações impiedosas lhe pesavam e tolhiam a alma, levando-lhe a vontade. E enquanto as de Alexandre o prendiam, subjugado a si, as dela acenavam-lhe um novo amanhecer.

________________________________________________________________________________

Mais uma dose de "Saga". Apesar dos esforços, não consigo condensar tudo o que tenho escrito nos 15 capitulos que tinha previsto inicialmente. Por isso, a história vai ser um bocadinho mais longa. :rolleyes:

Obrigada a todos os que seguem esta trama. Boas leituras ;)

Apreensão

Foram escassos os minutos de sono, apesar do cansaço que lhe pesava nos olhos. O medo tinha-a prisioneira numa inércia que mutila e atrofia. Quando o dia nasceu em mais um início de jornada, percebeu que preferia a guerra das horas, os arrepios da solidão, àquela inacção que a secava numa vida sem sentido. Não sabia de onde vinha essa força que descobria, mas persistiria nessas rotas que maltratam, até achar a sua estrada. Ouviu no exterior a sirene que anunciava mais um dia de trabalho escravo nas minas. Eram seis e trinta da manhã. Os guardas saíam em mais uma mudança de turno.

Alexandre dirigiu-se ao quarto da mulher na sua ronda diária. Lúcia sentiu os passos do marido no corredor e tremeu, o medo ainda a inundar-lhe os sentidos. Alexandre abriu a porta de rompante e os olhos saltaram de admiração. Lúcia permanecia no quarto, os olhos oscilantes entre a janela e a porta. Olhou-a e apesar da surpresa ainda o percorrer contundindo todos os cantos do seu corpo, deixou-se estar apoiado na porta, enquanto Lúcia se detinha, vacilante. Dentro de si desenhava-se a incerteza. Porque insistia ela, porque não fugira?

– Para onde é que estás a olhar? – Perguntou-lhe implacável.

– Não tinha sono e fiquei a ver o sol nascer. – Respondeu-lhe a mulher, a tremer internamente.

– Estás vestida e a cama está feita…vens de algum lado? – Testava-a, austero.

– Não, passei aqui a noite toda.

– Então estás à espera que saia para ires aonde? – Continuava a espicaça-la.

Lúcia olhou-o, muda e atónita, sem saber o que responder a esse jogo de palavras do marido. Afastou-se em choque da janela e encostou-se à cabeceira da cama. Só então percebeu o porquê das cancelas abertas na noite anterior e agradeceu silenciosamente a mão amiga que a salvara do deserto dos seus dias.

O Governador aproximou-se, sentando-se a escassos centímetros dela, que se endireitou desconfortável, afastando-se ligeiramente dele. Alexandre procurou-a e poisou a mão bruta na sua perna. Ela sobressaltou-se sentindo os músculos retesar de incómodo. Mesmo sentindo a sua inquietação, Alexandre não retirou a mão, poisada silenciosamente na mulher, comprimindo-lhe a perna, percorrendo-a rudemente até à coxa, subindo abrupta ao seu sexo. Lúcia gemeu de aflição, cruzando as pernas. Alexandre abriu-as violentamente, o rosto ruborizado de cólera.

– És minha mulher! Tens que ser minha, sempre que eu quiser!

Tomou-a à força, jogando-a na cama, enquanto as lágrimas caíam enojadas em Lúcia. Sentia o rosto do marido de encontro a sua face, a barba a roçar-lhe a pele fina e clara, o hálito quente dele de encontro o seu pescoço, a respiração ofegante de Alexandre a queima-la até que um líquido viscoso lhe inundou as coxas. Alexandre deixou-se estar uns segundos em cima da mulher, levantando-se de seguida, com ar vitorioso, arranjando o fato branco transpirado. Saiu, numa irritação sem sentido, batendo a porta.

Lúcia esperou, deitada na cama, que o marido saísse ouvindo os seus passos enérgicos percorrerem o corredor. Mordeu com fúria a almofada, sentindo a raiva arranhar-lhe os sentimentos e revolvê-la em revés, percorrendo-lhe o âmago, a rasgar, a morder toda a sua consciência. Percebeu que a sua única estrada era acabar com a necessidade que a prendia a Alexandre e que o tornava indispensável. Buscava com urgência uma saída para aquele jogo que a prendia num labirinto. Estava cansada de viver amordaçada e de esperar em meios caminhos.

Levantou-se de rompante da cama, sentindo-se suja até aos limites da sua alma que definhava. Dirigiu-se ao chuveiro onde se deixou ficar, sentindo a água submergir-lhe o corpo, inundando-lhe o espírito. Sentia ainda os braços pesados de Alexandre cravados nela. O seu cheiro cada vez mais embebido na sua pele. Revivia todo o asco que nutria por ele, pelos seus modos primários. Pela forma rude com que falava e a tratava, pelo cheiro a suor que o corpo dele exalava e que tanto a agoniava. A água escorria-lhe na pele nua que esfregava com fúria na ânsia de arrancar todos os vestígios daquele homem em si.

O sono impiedoso pesava-lhe nos olhos, sem a deixar adormecer, atrasando-se nas horas. O corpo queixava-se, derreado de se retorcer na cama. Os músculos dilatavam-se e a vida saia-lhe, como num sopro. Sentia-se planar a cada batida do coração. Vestiu o roupão turquesa que pendia do canapé e olhou-se ao espelho de laca dourada que se encontrava em frente. Reconheceu os traços, repudiou a figura. Os mesmos lábios vermelhos que costumavam gargalhar estavam agora pálidos. Os mesmos olhos claros, dois faróis de vida, turvados com as memórias, despojos remotos esquecidos nalgum vão. O que fizeram, o que fiz de mim? Quero entender…

Miguel chorava, do outro lado do corredor. Lúcia levantou-se da cama com o sem vontade comum a todos os seus dias. Aproximou-se da porta, a mão suspensa no puxador, sem se mexer. Ouvia os gritos agitados do menino que a começavam a afligir, a pouco e pouco. Saiu do quarto e abriu a porta em frente do pequeno corredor, onde se encontrava o pequenito. Lúcia aproximou-se do bebé que a fixava, placidamente, numa segurança ingénua. Nenhuma cuidadora se encontrava no quarto. Inclinou-se sob o bercinho de grades do menino. Baixou-se, passando o braço pelas grades, pegando-lhe na mão pequena e frágil. Lúcia largou-lhe a mãozinha rechonchuda e virou-lhe costas. O menino chorou, indefeso e abandonado. Lúcia voltou-se de novo para ele, em compaixão.

– Pobrezinho, também tu tens medo da solidão... – Disse-lhe tomando-o nos braços. Desde o dia em que o retirara, coberto de sangue, dos braços imóveis de Clarisse que não o segurava. Sentiu o seu calor de encontro o seu peito. Este olhou-a, oferecendo-lhe um delicioso esgar sorridente. Apertou-o mais de encontro a si, afagando-lhe os cabelos claros.

– Desculpa não me sentir tua mãe… – Segredou-lhe, antes dele adormecer.

Lúcia deitou-o de novo no berço, saindo em passos leves do quarto do menino. Regressou ao seu quarto, procurando em esforço adormecer, já arrasada de cansaço.

Mais reconfortada, compreendeu que arranjar forças era a única arma que lhe faltava para lutar. Deitou-se na cama, a noite não dormida pesava-lhe no corpo extenuado. Mesmo assim, o sono era cruel e teimava em não chegar. Permaneceu deitada, olhando a janela onde o sol percorria a sua rota, erguendo-se cada vez mais alto no exterior. Queria tanto voltar a casa. Voltar a sentir-se forte e inteira. Voltar a sorrir. Voltar às raízes, levantar-se daquele chão. Retroceder a quem era, virar costas e regenerar o ser. Como poderia ela viver presa a uma vida tão ao contrário do que imaginara para si? Nunca se tinha imaginado propriedade de alguém, agora, tomava consciência deste facto. A sua vida era apenas um objecto de deleite nas mãos de alguém que a jogava por prazer, como a um troféu.

A manhã já ia alta quando adormeceu, exausta, finalmente perdida em si. Procurou os sonhos como único e incomparável amparo da alma aviltada.

O rosto do pai assomou-lhe à mente, sensato e complacente. "Nada está perdido", dissera, antes de morrer.

Acordou quando o silêncio solene já se abatera num fim de tarde amplo de desolação.

Enquanto o ânimo existe, o coração denega a morte

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