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O Fim da Terra


oasis

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A verdade é irrefutável: após o nascimento de Jesus Cristo, o mundo nunca mais foi o mesmo. Sua vida fora povoada de mistérios escondidos dos nossos olhares. No entanto isso pode dissipar-se quando o cientista António Bellini, um italiano naturalizado português, resolve fazer uma investigação meticulosa num relicário antiquíssimo, que cobrira o Salvador quando este falecera, o Sudário de Turim, situado na cidade italiana de Turim - por isso o nome. O que Bellini, realmente, queria era provar que o mundo vinha sendo enganado durante séculos pela Igreja Católica Apostólica Romana, uma vez que a Bíblia e todos os dogmas da Instituição.

Entretanto, o tiro saiu pela culatra: ele acaba descobrindo células vivas de Cristo, no Sudário, que forçosamente provavam a ressurreição do Salvador e sua existência. Para garantir ser esta hipótese verdadeira, Bellini, sem pensar duas vezes, CLONA JESUS CRISTO...

Todos os dias no TVU, a sua nova novela.

1984

O teatro que abriga renomados cientistas, especializados em diversas áreas, está cheio. Todas as cadeiras, tanto da plateia principal, como dos três outros andares, estão ocupadas. Os cientistas conversam entre si, causando um grande barulho que se espalhava facilmente por todo o ambiente. No palco, uma tela gigante mostra cenas da natureza, paisagens amenas como a de pássaros cantando na mata fechada e a de um pôr-do-sol numa serra fria. À frente desta tela, está uma mesa em forma de semi-círculo com vários cientistas. Exactamente ao meio, uma mulher bastante produzida aproxima sua boca de um microfone e, após bater duas vezes com o dedo indicador, testando a potência do som, ela fala:

MEDIADORA -- Bom dia, senhoras e senhores. Por favor! (A PLATÉIA ACALMA-SE) Começamos o primeiro dia do nosso XVI Congresso Científico de Lisboa com especialistas na área de História Natural. O tema a ser discutido hoje é a Bíblia. Passo a palavra agora ao doutor em História Natural pelo Instituto de Biologia da Universidade Moderna de Lisboa, o Professor Bellini. António Bellini!

A esposa do professor, Marta, entusiasmada, e seu amigo, norte-americano, Raymond Dart são os primeiros a bater palmas para o cientista. Bellini agradece levantando a mão suavemente para os dois. Logo após, ajeita os papéis necessários ao debate e, aproximando-se do microfone, profere, bem grave:

BELLINI -- Bom dia, caros amigos e amigas. Estou aqui, primordialmente, para falar das minhas vastas pesquisas no campo da História Natural, que vieram reflectir somente agora, com um estudo em dois volumes sobre a extrema falsidade com que as escrituras, ditas sagradas, vêem enganando bilhões de pessoas durante essas centenas de anos/

O outro cientista, Bismarck, interrompe o texto de Bellini com uma agressividade fora do normal para reuniões como aquela.

BISMARCK -- Por favor, amigo, sejamos realistas. Nada foi provado até agora.

BELLINI -- Vejo que não leu meu estudo, senhor Bismarck. As conclusões a que chego são tão óbvias que qualquer criança de 10 anos poderia entender.

BISMARCK -- Desculpe, professor Bellini, mas o senhor quer apenas um bom punhado de entrevistas para programas de televisão esgotando sua agenda. Nada mais. Seu compromisso com a verdade é zero. Você é um mentiroso de marca merda.

BELLINI -- Me desculpe se o senhor não tem capacidade de investigar a fundo, como eu fiz com os escritos bíblicos. Posso dizer para os senhores, como um exemplo do meu estudo, que o dilúvio, embora ainda intrigue os cientistas, não é nada mais do que o plágio de um texto épico babilónico de Gilgamesh. Solucionado o mistério do dilúvio na Bíblia, continua o da sua origem. Sabe-se que o Mar Mediterrâneo, num evento catastrófico, inundou e através do Estreito de Bósforo deu origem ao Mar Negro como o conhecemos hoje. Logo, o dilúvio não foi nada mais do que a inundação do Mar Mediterrâneo. Outro exemplo é o Êxodo. Não há registos arqueológicos ou históricos que comprovem a existência de Moisés ou dos fatos descritos no livro. Muitos reinos e locais citados na jornada de Moisés pelo deserto não existiam no século XIII a.C., quando o Êxodo teria ocorrido. Esses locais só viriam existir 500 anos depois, justamente no período dos escribas deuteronômicos.

BISMARCK -- É impressionante como você consegue influenciar a mente das pessoas. Até eu poderia acreditar que são pesquisas com algum fundamento. Mas não se enganem, senhores. Não são. Preferia não ter vivido esta passagem que vou contar agora, mas vivi: conheci o professor Bellini na faculdade e ele já era acostumado a copiar trabalhos dos outros. Não tenho dúvida como ele deve ter feito das duas coisas uma: ou copiou de um trabalho preexistente, ou formulou uma tese sem nenhum embalamento científico.

Bellini recolhe seus papéis rapidamente, põe sua caneta no bolso da camisa, levanta-se da cadeira e vai saindo.

BISMARCK -- Segurem este maluco! Ele não pode sair assim. Estamos no meio de um debate!

A mediadora do debate, como os outros na mesa, parece não entender nada. Antes de descer os degraus do palco que levavam directamente à porta de saída, Bellini ao ouvir as palavras do Bismarck, vira-se e olha bem nos seus olhos.

BELLINI -- Debate com você?! Acho que não é bem a palavra certa.

Marta e Dart levantam-se de suas cadeiras, preocupados, e seguem Bellini que sai em disparada.

Bellini vai saindo com seus papéis e suas pastas debaixo do braço e, ao abrir a porta, quase acerta um outro cientista seu colega que se preparava para entrar no teatro onde acontecia o debate. Logo atrás, Marta e Dart, chamando por ele. Bellini pára, de repente, e volta-se para eles, com um ar de culpa.

BELLINI -- Desculpem, eu me esqueci de vocês.

MARTA -- Você está bem, António? Você está bem?

Marta toca o rosto do marido com seus dedos suaves, tentando acalmá-lo. Ele põe a mão dele em cima da dela e respira uma vez profundamente.

BELLINI -- Eles fizeram de propósito. Trouxeram esse marginal, só para me tirar do sério. A comunidade científica não aprova meu estudo sobre os escritos bíblicos.

Sem nenhum sotaque de outra língua, Dart fala num tom calmo.

DART -- Tenha um pouco mais de calma, amigo. Sua tese é óptima! Eles vão descobrir seu valor pro mundo.

BELLINI -- (MAIS CALMO) Eu sei. Vamos embora? Acho que a gente não tem mais nada o que fazer aqui.

DART -- Eu tenho que te avisar isso agora se não eu me esqueço. Eu já reservei o hotel lá em Turim e comprei as passagens do voo.

BELLINI -- Amanhã, bem cedo passamos na faculdade e pegamos os equipamentos.

MARTA -- Vocês vão levar os equipamentos da faculdade?

BELLINI -- Não, Marta. É um equipamento especial, financiado pelo Estado. Foi um milagre termos conseguido.

MARTA -- Vocês têm certeza que querem fazer isso? Eu acho que é mexer em vespeiro. Vocês estão batendo de frente com a Igreja Católica.

BELLINI -- Vai ser a última parte do meu estudo, Marta: provar se o Sudário de Turim é real. Vai ser um ultimato.

MARTA -- Ainda dá tempo da gente sair para almoçar. Vocês aproveitam e me falam sobre a viagem. O que é que você acha daquele restaurante japonês que abriram no Vasco da Gama?

Eles vão saindo.

DART -- Se não for pagar, acho óptimo.

Os três riem.

Helena, segurando o pequeno Caio, senta-se no sofá da sala, já rasgado por conta do tempo. Ela usa um vestido rosa, bem bonito e simplório. Nos lábios, um batom e, nas faces, pouca maquilhagem. A casa é pequena e ainda está em construção. Roupas e mais roupas, livros e outros objectos dividem o espaço da sala com os seres que ali coabitam. O garoto loiro pula, dando risadinhas divertidas, enquanto Helena brinca com ele. Quando Caio dá um momento de descanso

HELENA -- Ah, meu Deus! O Medeiros vai chegar e a Lila não chega.

Neste momento, a campainha toca. Helena levanta-se com Caio no colo e vai até à porta. Ela abre e depara-se com José Medeiros, seu namorado, com um enorme buquê de rosas de um vermelho gritante, forte. É um momento bem romântico. Sem dizer palavra, ele aproxima o buquê dela.

HELENA -- Pra mim, Medeiros?

MEDEIROS -- É.

Ela segura-o e aspira o doce odor que emana do buquê.

HELENA -- Você sabia que não precisava. É lindo! Obrigada. Entra. Fica à vontade. Só, por favor, não repara na desarrumação. A gente está em obras e sabe como é.

Ele vai entrando e ela rouba um beijo em sua boca.

MEDEIROS -- Eu pensei que a gente já fosse sair.

HELENA -- Eu também, mas eu recebi a missão de cuidar do Caio enquanto o pessoal daqui de casa está fora. A Lila não chegou ainda. Segura por um minutinho o Caio que eu vou ali colocar essas rosas num vaso.

MEDEIROS -- Claro.

Ela passa o menino para Medeiros e entra pela casa. Ele anda desviando umas coisas pelo chão até sentar-se no sofá. Pouco depois, Helena volta com todas as rosas dentro de um vaso.

HELENA -- Olha, Medeiros: ficou a coisa mais linda! Obrigada, meu amor.

Ela põe o vaso ali no chão mesmo e senta-se no sofá. Helena encosta-se nele, amorosa. Medeiros afaga seu cabelo e beija-a. Um barulho de chaves na fechadura vem de fora. Eles precedem a abertura da porta e a entrada de Luísa, com muitos livros e avaliações de seus alunos.

LUISA -- (ENVERGONHADA) Desculpa, gente. É que a directora da escola me parou pra fazer um interrogatório. Queria saber se a limpeza da escola ajudava no melhor aprendizado dos alunos, umas coisas assim. Nem prestei muita atenção porque eu estava apressada.

MEDEIROS -- Então, segura o campeão que a gente já está saindo.

Luísa coloca os livros e os papéis em cima do sofá e segura o garoto.

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ok...eu sei que é bem comprida, mas acho que vão gostar.

Numa grande sala, vários jornalistas trabalham incessantemente, fazem as reportagens para serem veiculadas na próxima edição do jornal Diário de Notícias. Outros atravessam a redacção de um lado para o outro, gesticulando, conversando. Uma escada, na entrada do local, levava à sala do dono e administrador do jornal, Tomás, que observava toda aquela correria de panorâmica. Um Office-boy raquítico, chamado Marcello, parecendo ter metade da idade, vai passando carregando um pacote quando um jornalista sentado a uma mesa puxa um papel da máquina de escrever, já dactilografado, e o entrega, dizendo:

JORNALISTA – – Leva pro teu patrão, sujeito. Leva lá, vai!

MARCELLO –– Sim, senhor.

Na sala de Tomás, a disposição dos móveis é a mais moderna da época. Sentado a sua mesa, Tomás está no meio de um telefonema.

TOMÁS –– Claro que não. Você não está me entendo, Virgílio? Invista! Invista! Não quero saber que desculpas você tem pra me dar. Eu sei o que eu estou fazendo.

Do outro lado da porta, bate Marcello.

TOMÁS –– (TAPANDO O BOCAL DO MICROFONE) Entra! (P/ O MICROFONE) Das últimas vezes que nós investimos nessa área, Virgílio, nós ganhamos tubos de dinheiro.

Com uma timidez fora do comum, Marcello entra. Ele aproxima-se da cadeira, a fim de sentar-se, mas recebe uma negação furiosa com a mão, vinda do senhor. Ele baixa a cabeça e abraça-se no pacote e no papel que trazia, amassando-os.

TOMÁS –– (FURIOSO) Olha, Virgílio: eu não tenho tempo pra ficar ouvindo suas desculpas. O dinheiro é meu e eu faço dele o que quiser.

Após essa afirmação grosseira, ele desliga o fone sem se despedir. Marcello, sem levantar a cabeça, estende o papel que o jornalista lhe entregara. Antes de pegá-lo, Tomás observa Marcello da cabeça aos pés e faz uma expressão nada agradável.

TOMÁS –– O que é isso? Levante essa cabeça! Do que é que você tem medo? De mim?! Você não deveria ter medo e sim, gratidão. Sou eu quem pago sua faculdade e quem te dá comida, mal agradecido!

MARCELLO –– Desculpa, seu Tomás.

TOMÁS –– Senhor Tomás, por favor.

MARCELLO –– Sim, senhor.

TOMÁS –– O que foi que veio fazer aqui? Veio só tomar cafezinho e deixar de trabalhar, preguiçoso?

MARCELLO –– (ESTENDE O PAPEL) Não, senhor. Eu vim entregar o que mandaram da redacção pro senhor.

Tomás pega grosseiramente e começa a ler, porém, de repente, ele volta o olhar para Marcello e amassa o comunicado. Ele aproxima-se do rapaz e esfrega o papel em seu rosto, manchando-o com grossa tinta da máquina.

TOMÁS –– Seu idiota!

Marcello recua até esbarrar na porta. Ele está completamente aterrorizado.

TOMÁS –– Você manchou o comunicado do jornalista com suor! Esse seu suor imundo, asqueroso! Eu já falei pra você se assear de maneira correcta, mas você é estúpido.

MARCELLO –– (COM OLHOS LACRIMEJANTES) Não, seu Tomás. Eu tomei banho hoje, mas é que o clima está muito/

TOMÁS –– Não quero saber o que você tem pra me dizer. (P) Será que eu vou ter que te afogar numa banheira com sabão pra você deixar de suar, seu energúmeno?

Marcello deixa o pacote cair e sai correndo, com um terror inigualável nos olhos.

TOMÁS –– Volta aqui, Marcello. Não adianta fugir. Quando você voltar, você vai ver o reflexo da sua incompetência.

Bismarck está sentado a uma mesa, coberta por um pano alvíssimo. É um restaurante de fino porte. Sobre a mesa, pãezinhos levemente torrados e uma xícara grande com uma generosa quantidade de café com chantilly. Uma minúscula pá ajudava Bismarck dissolver o chantilly. Neste instante, três homens entram no ambiente. Todos vestidos com ternos pretos, caríssimos e bem cortados. Um deles tem na mão uma maleta. Eles sentam-se à mesa com Bismarck.

BISMARCK –– Querem café? Ou pãezinhos torrados? Ambos estão uma maravilha.

HOMEM 1 –– Preferimos não comer nada.

BISMARCK –– Vocês estavam no Congresso?

HOMEM 2 –– Eu estava.

HOMEM 3 –– Não viemos falar sobre pãezinhos ou sobre o Congresso.

BISMARCK –– Eu sei. Então vamos aos negócios, amigos. Quanto tem aí na maleta?

O homem 1 coloca a maleta em cima da mesa e a abre discretamente mostrando seu conteúdo: várias notas de cem dólares, amarradas em pequenos montes.

HOMEM 2 –– Quinhentos mil dólares.

BISMARCK –– Quinhentos mil? Só? Achei que o nosso acordo estivesse num patamar mais elevado.

HOMEM 3 –– E está. Quando você completar o serviço, nós traremos outra maleta com mais quinhentos dólares.

BISMARCK –– Acho que já é o suficiente. Um milhão de dólares pode bancar uma casa nas Bahamas.

HOMEM 1 –– Você faz o que você desejar com o dinheiro. Nós só queremos que você impeça o professor Bellini de concluir a investigação sobre o Sudário de Turim.

O homem 3 tira de dentro do terno uma passagem aérea e joga-a na mesa. O bilhete desliza e aproxima-se de Bismarck. Ele pega e olha.

HOMEM 3 –– Sua passagem pra a Itália.

HOMEM 2 –– Você tem que chegar antes da equipe do professor pra ter algum sucesso na sabotagem.

BISMARCK –– Tudo certo. (P) Pra quem vocês trabalham?

Os homens entreolham-se.

HOMEM 1 –– Limite-se a saber o que nós dizemos.

BISMARCK –– Pra Igreja?

HOMEM 2 –– Acho que sua pergunta já foi respondida.

HOMEM 3 –– Temos que ir agora.

O homem 3 levanta-se da cadeira e os outros acompanham.

HOMEM 1 –– Um amigo nosso que mora na Itália já está sabendo que você vai até lá. Ele vai te receber no aeroporto de Roma. Não se preocupe. Ele sabe quem você é. Acho que isso é tudo.

BISMARCK –– Então, estamos combinados.

Bismarck estende a mão para que houvesse um aperto de mão significando o acordo fechado, mas os homens apenas o olharam.

HOMEM 1 –– Até mais, senhor Bismarck.

Os homens saem. Bismarck abre a maleta a fim de confirmar o que havia ali dentro. As belas notas cintilam à luz.

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Helena e Medeiros estão sentados em um banco próximo no lago no centro da praça. Eles tomam picolés de colorações diferentes. O lugar é bem charmoso. Uns casais andam de mãos dadas. Crianças pedalam suas bicicletas, correndo pra lá e pra cá. Enfim, é um local bastante calmo, apesar da agitação das crianças.

HELENA –– Coitada da Lila, viu?! Ela trabalha muito e quando chega em casa ainda tem que cuidar do Caio, porque o pai, praticamente, mora na faculdade e a mãe, praticamente, mora dentro de uma loja de roupas caríssimas.

MEDEIROS –– Sem querer ser indiscreto, mas já sendo: o Adalberto ajuda a pagar as contas?

HELENA –– Desde o segundo semestre da faculdade, quando era preciso estagiar que ele arranjou um estágio numa firma de advocacia. Até agora ele continua lá, porque ele é muito dedicado. Eu que moro com o Adalberto sei o quanto ele estuda, quanto amor ele tem pelo direito. Eu tenho certeza como vai ser um grande profissional.

MEDEIROS –– E o Ricardo?

HELENA –– Ah, esse parece ser um caso perdido. A Luísa não está nem aí, porque ela acha que ele tem que ter mais respeito com a gente. Mas eu não. Não suporto ver ele fazendo aquelas coisas que ele faz. Uma delas foi aquela vez que ele saiu arrancando a placa dos carros. Eu acho que eu até te contei isso?!

MEDEIROS –– Contou. Quantos anos ele tem?

HELENA –– Vinte e cinco. Já devia ter criado juízo, por isso que eu me revolto. Pois é. Eu acho que/

MEDEIROS –– Espera um pouco, Helena. Agora é a minha vez de falar. Tenho uma surpresa pra você.

HELENA ––O que é?

Medeiros joga o palito de picolé e mete a mão no bolso da calça para tirar uma caixinha coberta por um veludo bem macio.

HELENA –– O que é isso, Medeiros?

MEDEIROS –– Adivinha!

Falando isso, ele abre a caixinha e deixa à mostra um anel de ouro. Ela fica bastante emocionada. Seus lábios ensaiam alguma coisa, mas não sai nada de sua boca.

MEDEIROS –– Quer casar comigo?

Helena leva a mão à boca.

HELENA –– Quero.

Helena e Medeiros já entravam no carro dele que fora estacionado do outro lado da praça. Ela de anel no dedo, observando orgulhosa.

HELENA –– Meu Deus, Medeiros, você me surpreende a cada segundo! Isso é muito lindo. Você é maravilhoso. Cuidado, porque eu posso ficar mal acostumada.

Medeiros liga o carro e eles partem.

MEDEIROS –– Ah, isso foi uma coisinha sem importância.

HELENA –– Coisinha sem importância?! Deve ter sido muito caro.

MEDEIROS –– Não importa o preço. O que importa é a sua satisfação, meu amor. Você gostou?

HELENA –– Gostar? Eu amei! Muito obrigada! Você é o homem da minha vida.

Os dois entreolham-se. Medeiros tira os olhos da estrada por uma fracção de segundos e olha ternamente para Helena. Na calçada, pronto para atravessar está um garotinho. Ele olha apenas para um lado e corre. Ao voltar-se para a rua, Medeiros percebe a presença do garoto bem próximo do carro. Ele pisa no freio, desesperadamente, mas o carro não consegue parar a tempo de evitar a colisão. Tanto o rosto de Medeiros como o de Helena ficam aterrorizados com o que acabava de acontecer. O garotinho cai a uma distância consideravelmente longe do carro, com arranhões por todo o corpo e sangrando muito.

O garoto continua ali no meio da rua, ensanguentado. Curiosos começam a assomar. Pouco tempo depois, Vera, a mãe do garoto, vem correndo a fim de ampará-lo, porém com lágrimas já rolando pelo rosto. Medeiros e Helena descem do veículo e aproximam-se do corpo aparentemente sem vida. Vera senta-se no asfalto quente e, chorando copiosamente, põe o filho em seu colo como se fosse embalá-lo num sono profundo e relaxante.

VERA –– Você matou meu filho!

HELENA –– (PASMA) Não, minha senhora. Claro que não. Ele foi atravessar e/

VERA –– Não. Não adianta tentar se fazerem de inocente, porque vocês são culpados.

MEDEIROS –– (TRANSTORNADO) Claro que não, minha senhora. Olha: não vai adiantar de nada a gente continuar discutindo aqui quem é o culpado nessa história toda. Coloca o garoto dentro do carro que a gente vai levar pro hospital mais perto.

VERA –– Eu não quero ajuda nenhum de vocês. Assassinos!

HELENA –– A senhora me desculpa, mas isso é idiotice. Se a gente não levar essa criança pro hospital agora, ela vai morrer. Olha o quanto ele sangra!

VERA –– Tudo bem. O Vitinho está precisando de ajuda, mesmo.

MEDEIROS –– Então, entra no carro.

Caio brinca no chão com seus carrinhos e bonecos. Na sua escrivaninha, Luísa corrigia as avaliações dos alunos. O quarto é semelhante à sala. A campainha toca.

Luísa já abrindo a porta com Caio no colo. Donato (30), seu namorado, entra, sem trocar uma palavra com ela e como se estivesse fugindo da polícia. Ele está todo arrumado, de banho tomado, com um perfume forte e cheiroso. Como se já estivesse em casa, ele esparrama-se no sofá.

LUISA –– (FRISANDO) Oi, Donato. Tudo bem com você?

DONATO –– (RINDO, NOTANDO SUA PRESENÇA) Oi, Luísa . Eu ando meio avoado por esses dias.

LUISA –– Literalmente avoado. Eu liguei pra sua casa agora há pouco e você não estava. Por onde foi que você andou?

DONATO ––Eu... eu... eu... fui visitar o Luís e acabei me atrasando. Você sabe como todo mundo me adora lá e quando eu digo que vou embora fazem um pra que eu fique.

LUISA –– Se Luís for aquele seu amigo moreno, baixo, com uma tatuagem de um dragão no braço, você não estava lá, porque eu liguei pra ele.

DONATO –– Você deu pra investigar minha vida agora?

LUISA –– Não, Donato, eu liguei só por ligar, mesmo. Queria dizer que hoje nem adianta vir com conversa que barzinho tal vai ter fulano cantando ao vivo, porque eu tenho que corrigir não sei quantas provas, de não sei quantos alunos pra amanhã de manhã. E você sabe o que foi que aconteceu da última vez que eu precisava corrigir as provas e eu dei uma escapulida com você, ?!

DONATO –– A gente finge que não aconteceu nada que é pra não traumatizar.

A campainha toca e Donato arregala os olhos, começando a suar.

LUISA –– Pode deixar que eu abro.

Donato pula do sofá e põe-se a cobrir a porta antes que Luísa pudesse ver quem tocava desesperadamente a campainha.

DONATO –– Não, deixa que eu abro.

LUISA –– O que foi, Donato? Qual o problema? Por que é que eu não posso abrir a porta?

Sem responder, Donato abre apenas uma pequena fresta da porta. Olhando, rapidamente, ele faz um gesto tanto com as mãos como com a boca, mandando a pessoa embora. Ele fecha novamente a porta e volta-se para Luísa como se nada tivesse acontecido. Ele até abre um leve sorriso. É óbvio que por aquele gestual não ter sido nada de discreto, que Luísa ficara desconfiada.

LUISA –– Com quem era que você estava falando, Donato?

Donato, com a expressão mais santa possível, fala:

DONATO –– Você deve estar ficando maluca, Luísa. Eu não estava falando com ninguém.

A campainha volta a tocar.

LUISA –– Donato, eu não sou idiota. Eu vi você mandando a pessoa sair.

Ela tira-o da frente da porta grosseiramente e a abre, revelando a figura de uma bela mulher, chamada, com uma grande calça boca-de-sino, um cinto e uma blusinha rosa. Luísa fica sem entender. Mesmo sem tirar os olhos da moça, ela fala para Donato.

LUISA –– Quem é essa mulher, Donato? Você conhece?

LUÍSA -- Quem é essa mulher, Donato? Você conhece?

CLÁUDIA -- (INTROMETENDO-SE) Eu conheci o Donato numa festa. Prazer!

Cláudia estende a mão para Luísa, mas ela finge que tem que cuidar do bebé.

LUÍSA -- Numa festa? Sei...

DONATO -- Numa festa que a firma promove todo fim de mês prós aniversariantes.

CLÁUDIA -- (VAI ENTRANDO) Donato, você é casado?

DONATO -- Não, Cláudia. Essa é minha irmã.

LUÍSA -- Que irmã, Donato?! (GRITANDO) Seu desavergonhado! Eu estou sabendo agora onde é que você anda?! Podem sair, os dois!

DONATO -- Mas, meu amor, foi tudo um mal entendido.

CLÁUDIA -- Olha, Donato: ontem você me disse que era solteiro e que morava num apartamento em Copacabana.

LUÍSA -- Olha, minha filha: ele é casado e muito bem casado.

DONATO -- Também não vamos exagerar, Luísa. Nós somos só namorados, Cláudia. Não acredita nela, não.

LUÍSA -- (CONTINUA) Está vendo essa criança aqui? Fruto do nosso amor. Só que de um amor do passado porque tudo acabou de acabar agora. Pra fora os dois! E presta bem atenção, seu Donato, você não me aparece mais aqui nem pintado de ouro, você está me entendendo? Eu só não te dou umas boas porradas porque eu estou segurando o Caio, mas senão você ia ver!

Donato aproxima-se de Luísa, mas ela vira o rosto e abre a porta para os dois saírem. Ele desiste e sai acompanhado de Cláudia. Por fim, Luísa joga-se no sofá, com os olhos lacrimejantes.

Marcello irrompe a sala de sua casa, furioso. É uma casa bem pequena e bastante simples. Apenas um sofá e uma televisão ocupam quase todo o espaço da sala. A janela dá para um terreno baldio ao lado. Carrinhos, bonecas e outros brinquedos estão espalhados por ali. Marcello tira as almofadas do sofá, procurando algo, porém não encontra nada. Ele vai atrás da TV, vasculha vários lugares com a mão, mas sua tentativa não tem sucesso. Então, ele desiste da sala e parte para a cozinha. Lá, vemos uma geladeira e pia pequenas, um fogão com quatro bocas e uma despensa. Marcello investe com a mão em cima desta última e tira de lá uma arma. Ele verifica que está completamente carregada.

MARCELLO -- Um dia eu te mato, desgraçado. Um dia eu te mato!

Ouvimos uma voz de criança vindo da sala. Marcello esconde rápido a arma no lugar de origem. De repente, Vanessa entra na sala.

MARCELLO -- Oi, minha filha, tudo bem?

VANESSA -- Tudo bem, pai. Eu vi que você estava aqui e vim correndo da casa da Dona Loca.

MARCELLO -- Pois você volta pra lá que quando sua mãe voltar, ela passa e te pega lá. Agora eu preciso ir trabalhar, vim pegar só uma coisa que eu esqueci.

VANESSA – Ok pai. Chau!

Vanessa dá um beijinho no rosto do pai e sai.

A movimentação no hospital não é comum. Os médicos parecem estar mais agoniados por causa da grande demanda de pessoas por conta de acidentes. Medeiros e Helena, assim como Vera, estão sentados nuns bancos disponibilizados pelo hospital para tal fim. Medeiros abraça Helena de maneira especial, tentando acalmá-la uma vez que ela estava totalmente aflita e trémula. Vera não consegue segurar o choro. Mesmo assim, ela tenta esconder, colocando as mãos no rosto e baixando a cabeça. O clima é desagradável.

MEDEIROS -- Ele vai ficar bem, pode ter certeza.

VERA -- Tomara. É o meu filho mais novo e eu amo muito ele. Acho que se eu perdesse ele, eu ficaria maluca.

HELENA -- Acidentes acontecem. Você precisa entender isso.

VERA -- Eu sei. Olha: foi um erro meu ter acusado vocês assim, sem pensar, mas é que quando eu vi meu filho (EMOCIONA-SE) caído no meio da rua, eu tinha que responsabilizar alguém. Meu coração de mãe me dizia que alguém era o culpado nessa história. E eu tenho certeza como não foram vocês. Fui eu. Eu fui a culpada de tudo, eu deixei ele escapar da minha mão... Se ele morrer eu não vou me perdoar.

HELENA -- Calma. Ninguém tem culpa. Foi, como eu disse, um acidente.

VERA -- Não, não adianta tentar me consolar, não. A culpa foi minha. Eu deixei ele sair da minha mão enquanto eu conversava com uma amiga que eu não via há anos.

MEDEIROS -- Por favor, minha senhora/

VERA -- (CORTA-O) Vera, por favor.

MEDEIROS -- Então, Vera, eu tive uma boa parcela de culpa aí. Eu confesso que eu vinha meio distraído e quando eu vi o menino ele já estava muito perto e não teve como o carro parar a tempo. Olha: não adianta você ficar se culpar porque você não poderia imaginar que ele fosse sair correndo no meio da rua. (MUDA DE TOM) Vera, eu e a Helena vamos estar prontos a dar todo o apoio possível pra você. A gente faz questão de pagar o hospital, os médicos, os remédios, se for necessário, é claro.

VERA -- Eu agradeço muito. Espero que o Marcello venha logo. Eu já liguei pro trabalho dele, mas ele não estava.

Neste momento, um médico vestido com um jaleco branco interrompe a conversa deles com uma expressão cansada, estafada. Ele não parece estar em seu estado normal. Suas mãos trémulas seguram uma caneta e a ficha do garoto. Vera, Medeiros e Helena ficam tensos, olhando para ele.

MÉDICO -- (ENROLANDO) Bom, você é a dona Vera, mãe do...

VERA -- (JÁ PREVENDO) Fala logo, doutor!

MÉDICO -- (COM PESAR) Eu sinto informar, mas o garoto morreu!

Há um silêncio, uma pausa mórbida. Helena e Medeiros ficam de olhos arregalados, pasmos. Vera não esboça qualquer reacção. Apenas tem a boca entreaberta e os olhos em algum ponto insignificante.

MÉDICO -- A gente fez de tudo, dona Vera. Pode ter certeza, mas quando ele chegou aqui, a saúde dele já estava bastante debilitada.

Somente agora que Vera reage: ela vira-se para Medeiros e Helena e por segundos os olha. De repente, seus olhos se reviram e ela cai desmaiada. Os outros conseguem segurá-la antes de seu corpo bater ao chão. O médico começa a fazer os procedimentos necessários.

Marcello entra com um ódio nos olhos. Ele vem com a mão na cintura, protegendo alguma coisa. Ele vai subindo a escada em direcção a sala de Tomás, quando a telefonista o chama de lá de baixo.

TELEFONISTA -- Marcello, uma mulher ligou e deu o endereço do hospital. Disse que um sobrinho seu está muito doente.

MARCELLO -- (PENSA, ACHA ESTRANHO) Sobrinho? (MUDA DE TOM) Ah, meu sobrinho, claro.

Ele desce correndo rápido e vai saindo da redacção. A telefonista chama-o, novamente, e entra-o o papelzinho que tem na mão com o endereço.

TELEFONISTA -- Toma! Está aqui o endereço!

MARCELLO -- Já ia esquecendo! Brigado!

Marcello chega com os olhos esbugalhados, suando. Vera tem um copo com água nas mãos. Ela está com os olhos inchados de tanto chorar, lágrimas secas no rosto.

MARCELLO -- O que foi que aconteceu, Vera?

VERA -- (EMOCIONADA) Não sei nem como eu vou começar, Marcello. Me abraça, primeiro!

Eles trocam um abraço caloroso e um beijo.

MARCELLO -- O que foi que aconteceu com o meu filho? Ele está bem?

VERA -- Como é que está a Vanessa?

MARCELLO -- Ela está bem, mas me fala do Vitinho, Vera.

VERA -- Ele morreu, Marcello.

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não adquiriram, se adquirissem não podia mostrar esta série, porque estava a violar os direitos...já tentei mostrar as outras, na altura as outras produtoras disseram que nao estavam interessadas, NBP diz que já tem muito trabalho, tentei a CBV diz que é uma série cara e por isso não estava interessado, eu tentei em várias, recebi varias negas de todas.

Capítulo 5

MARCELLO -- Ela está bem, mas me fala do Vitinho, Vera.

VERA -- Ele morreu, Marcello.

MARCELLO -- Morreu? Mas como? (ATRAPALHA-SE) Ele... ele... ele... estava tão bem hoje de manhã quando eu saí pra redacção! Se isso é uma brincadeira.

VERA -- Claro que não é! Você acha que eu ia brincar com uma coisa séria dessas? Você acha que essas minhas lágrimas são todas fingimento?! Ele foi atropelado!

MARCELLO -- Meu Deus! Você não estava com ele, Vera? Você não estava cuidando dele?

VERA -- Eu estava, Marcello. Mas ele escapuliu da minha mão, eu acabei perdendo ele de vista... Por favor, me deixa só por um segundo! Eu preciso pensar!

MARCELLO -- Eu não estou acreditando que isso pôde acontecer.

Ele senta-se. Um pouco mais adiante, Helena e Medeiros conversam com o médico. Este último, de vez em quando, olha uns papéis presos a uma prancheta.

HELENA -- A gente não pode ver a criança?

MÉDICO -- Por enquanto, não. Não estamos limpando o sangue do corpo e colocando a roupinha dele.

MEDEIROS -- Doutor, por favor. Vê o que é que você ainda pode fazer! É a vida de uma criança que está em jogo.

MÉDICO -- Eu sei como deve estar sendo duro pra vocês, mas eu já fiz tudo o que estava ao meu alcance. Pode ter certeza como eu sofro tanto quanto vocês.

A rua está bucólica e quase que completamente coberta pelo manto escuro da noite. As árvores plantadas na calçada balançam seus galhos com o leve uivar do vento. Osório e Vilminha vêm de carro e param à porta do edifício onde ela mora. Ele desliga o carro e eles se olham com carinho.

OSÓRIO -- Chegamos!

VILMINHA -- É. Eu sei. Queria passar mais tempo com você.

OSÓRIO -- Você sabe que eu não posso. Já está tarde e amanhã eu tenho que acordar cedo pra acertar as coisas com o Dart sobre a viagem a Turim.

VILMINHA -- Meu cientista Osório! (RI)

Os lábios aproximam-se apaixonados e eles trocam um beijo bastante apaixonado. De repente, vindo, não se sabe de onde, um barulho de tiro ecoa pela rua. Vilminha recua assustada. Neste instante, ela vê que mais ou menos na altura do peito de Osório há uma grande quantidade de sangue, que crescia cada vez mais. Ela grita desesperada, enquanto ele agoniza e dá os últimos suspiros antes de cair ao seu colo, morto.

Um carro preto, último lançamento do mercado da época, pára em frente ao hospital. Com um filtro fume junto ao vidro, esconde-se tudo o que se passa dentro do veículo. O motorista sai de dentro do carro, devidamente fardado, parecendo estar a serviço de um "lord" inglês e abre a porta para seu patrão descer. Primeiramente um sapato caríssimo, de marca estrangeira, firma-se no chão da rua, logo após o outro. Eles erguem seu dono: o magnata Tomás que traja roupas negras, bastante alinhadas. Ele entra no hospital e fica incomodado com todas aquelas pessoas e médicos pelos corredores. Ele dirige-se ao balcão da recepção, onde duas moças vestidas de branco grampeiam papéis e atendem telefonemas.

TOMÁS -- Por favor, você poderia me informar se/

Sem notar, Marcello encosta-se no balcão ao lado de Tomás e fala para as recepcionistas, cortando a frase dele pelo meio:

MARCELLO -- Hei, moça, eu posso fazer um telefonema?

Marcello olha para o lado de relance e, Tomás e ele, cruzam os olhares. Marcello murcha consideravelmente, olha pra baixo, fica sem saber o que falar. Tomás joga um olhar congelante no pobre.

TOMÁS -- Encontrei quem eu queria. Eu soube que você veio aqui porque tinha um sobrinho seu que está doente, hospitalizado? Que história é essaMarcello? Que eu saiba a única família que você tem sou eu.

MARCELLO -- Eu estava planejando dizer.

A moça põe o telefone no balcão.

RECEPCIONISTA-- Vai usar?

Ele nega com a cabeça, sem deixar de estar com sua atenção voltada a Tomás.

TOMÁS -- O que é que você estava planejando me contar, Marcello?

Com um lencinho já húmido, nas mãos, Vera dobra no final do corredor e depara-se, inesperadamente, com os dois.

VERA -- Tomás?! O que é que você está fazendo aqui?

MARCELLO -- Eu tenho uma família. E um filho.

Tomás parece reconhecê-la e balança a cabeça como se não acreditasse.

TOMÁS -- Você, Vera? Filha de um colega meu, moça da alta sociedade carioca, estudante de medicina, rica, e esposa desse garoto, desse pivete? Traidor, ainda por cima!

VERA -- Se eu sou casada com ele, não é problema seu. Eu fugi de casa, sim, mas e daí se eu sou feliz. Mas eu quero te dizer uma coisa só pra esclarecer já que você não sabe o que é amor: a vida é mais do que acções, jóias, imóveis e apartamentos. Acho que você não sabia disso?! Claro que não. Tudo o que você enxerga e sabe fazer é humilhar as pessoas, por isso que nunca arranjou ninguém e vive mofando dentro daquele casarão. Olha, Tomás, sinceramente: eu tive o desprazer de ter te conhecido.

TOMÁS -- Quem é que você pensa que é pra falar assim comigo?

VERA -- Eu sou uma mulher que acaba de perder um filho e que está revoltada com o tratamento que você dá pro meu marido.

TOMÁS -- Vocês se merecem mesmo! Eu até podia ajudar vocês a processar a pessoa que fez isso com o garoto, mas não vou mais. Marcello, amanhã você passa lá no departamento pessoal do jornal e ajeita suas contas. Não precisa passar lá em casa. Eu peço pra Neide tirar suas coisas do quartinho e entregar na sua casa. Passem muito mal!

Tomás vira-se e sai. Marcello está arrasado com tudo o que Vera disse para seu patrão.

MARCELLO -- Vera, como é que você falou aquilo tudo!

VERA -- Você não gostou?

MARCELLO -- Claro que não, Vera.

VERA -- Mas, Marcello. Será que eu vou ter que dizer pra você que ele te fazia sofrer?

MARCELLO -- Não, Vera, mas eu sei o que é que se deve fazer ou não. Você agiu completamente errado e agora eu estou na rua da amargura, sem emprego. E tendo que alimentar quatro bocas.

VERA -- Três bocas. Agora, infelizmente, somos só eu, você e a Vanessa.

Eles ficam entreolhando-se, inseridos forçosamente numa nova situação. Eles estão confusos, frágeis com a perda do garoto.

De fora do quadro, vem uma célula andando rapidamente na superfície da lâmina, com ajuda de cílios presos a sua membrana plasmática. Em poucos segundos de caminhada, a célula aproxima-se de um pequeno detrito. Através da endocitose, ela fagocita o detrito, envolvendo-o. Tudo fica escuro abruptamente.

Maurício tira os olhos da ocular do microscópio e volta-se para seu caderno de anotações ali do lado, escrevendo suas conclusões sobre a cena que acabara de ver. Ele está sentado num banco alto à uma mesa de mármore, onde reside uma boa aparelhagem para estudos laboratoriais. A sala é toda cheia dessas mesas com aparelhos. Mais atrás, estantes e mais estantes conservam o material de estudo que é guardado em vidros com um líquido que preserva seu conteúdo. Seu colega estudante vai saindo da sala:

ESTUDANTE -- Vamos embora, Maurício. Você prometeu que ia sair com a turma.

MAURÍCIO -- Eu prometi, mas não posso largar assim as minhas anotações, cara. Será que dá pra entender?

ESTUDANTE -- Olha, cara: a aula já acabou faz uma hora. Daqui a pouco te enxotam daqui pra fora, porque vai começar a aula de outra classe.

MAURÍCIO -- Mas eu não saio. Enquanto, eu não terminar isso aqui, eu não saio.

ESTUDANTE -- Você vai ficar doido desse jeito, Maurício.

MAURÍCIO -- Eu preciso ganhar essa bolsa aqui na faculdade e ser um cientista famoso, descobrir alguma coisa relevante.

ESTUDANTE -- É, mas não precisa ficar doido. Olha: eu já estou indo, porque chegou minha hora. Se você quiser me encontrar, eu vou lanchar aqui no bar em frente à faculdade e depois vou pra casa.

MAURÍCIO -- Tudo bem! Vai com Deus, vai!

O estudante sai balançando a cabeça e achando a atitude de Maurício a maior insanidade. Agora, irrompem a sala, Bellini e Dart conversando.

DART -- A gente tem que arranjar um substituto antes que a gente tenha que entrar naquele avião e ir embora.

BELLINI -- Mas quem?

DART -- Esse é o problema!

BELLINI -- Você ainda está com o jornal aí?!

DART -- Está lá no meu carro. Depois eu te mostro. Foi matéria de primeira página. A namorada dele, a Vilminha, disse que foi terrível. Quando ela ouviu o tiro, o Osório já sangrava muito.

BELLINI -- Ele era um cientista fantástico. Vai deixar muitas saudades pra comunidade científica. Dart, faz o favor de pegar pra mim as duas caixas com os aparelhos que estão lá atrás.

DART -- Claro.

Dart passa pelo estudante em direcção às estantes.

BELLINI -- Pode continuar, Maurício, a gente vai fazer o máximo pra não atrapalhar você.

Bellini abre o armário em baixo da mesa e tira dois microscópios. Ele coloca por ali e continua tirando os equipamentos: Bico de Bunsen, tripé de ferro, tubo de ensaio, balão de fundo chato, Erlenmeyer, etc. Maurício, curioso, já nem presta atenção nas anotações.

MAURÍCIO -- Pra que é que você está seleccionando esses equipamentos todos, professor Bellini?

BELLINI -- Compre o exemplar do próximo mês da "National Geographic" que você vai saber.

MAURÍCIO -- (FINGINDO, DISCRIÇÃO) Se for viagem, aposto como tem a ver com a sua tese sobre a Bíblia.

BELLINI -- Acertou em cheio, meu rapaz.

MAURÍCIO -- Vocês vão pra onde? Turim? Vão investigar o Sudário?

BELLINI -- Isso mesmo.

MAURÍCIO -- Professor!

BELLINI -- Pode falar.

MAURÍCIO -- (UM TANTO ENVERGONHADO) Sem querer, eu acabei ouvindo a conversa de vocês. Eu ouvi vocês falando que precisavam de um substituto pro cientista que acabou morrendo e eu queria me oferecer. Eu conheci o professor Osório e é claro que eu não vou ajudar tanto como ele poderia fazer, mas eu posso ajudar pelo menos na parte braçal da coisa.

Bellini olha para Maurício parecendo claramente não ter gostado da ideia.

MAURÍCIO -- Me deixa provar o quanto eu quero ajudar.

BELLINI -- (DESANUVIANDO SEU ROSTO, ABRE UM SORRISO) O quanto você quer e o quanto você pode. Vou pedir pro Dart, meu amigo, ajeitar toda a papelada. Partimos no final de semana.

MAURÍCIO -- É sério? Você está falando sério?

Maurício fica com um sorriso de ponta a ponta. Bellini fazendo um certo suspense.

Episódio6

Os de antes, como antes.

BELLINI -- Claro, Maurício. Eu não iria brincar com um assunto desses.

Dart chega com as caixas de papelão.

DART -- Onde é que eu coloco?

BELLINI -- Coloca aqui. Junto desses outros equipamentos. (MUDA DE TOM) Mas sua mãe vai deixar você embarcar com a gente pra Turim?

Dart obedece Bellini e coloca as caixas juntas com os outros equipamentos.

MAURÍCIO -- Olha, professor: minha mãe mora no interior e, além disso, eu sou maior de idade. Já mando em mim mesmo.

BELLINI -- (P/ DART) Faz o que tiver de fazer pra ele ir, também. Vai substituir o Osório.

DART -- Ma/

BELLINI -- (CORTA-O) Fique tranquilo, Dart. O garoto tem competência. Olha, Maurício: a viagem vai ser de mais ou menos um mês. Você vai ter que perder aula na faculdade.

MAURÍCIO -- Vou aprender muito mais indo com vocês do que ficando aqui.

Luísa, quase pronta pra ir dar aula, Adalberto, Virgínia e Ricardo, sem camisa, servem-se de um belo café da manhã, com frutas, sucos, torradas, etc. Tudo isso está em cima de uma mesa relativamente grande. Virgínia com um hobby roxo e com chinelos rosas com formatos de ursinho. Ricardo sentado totalmente desleixadamente.

LUIZA -- (OLHANDO O RELÓGIO) Ah, meu Deus, já estou atrasada.

ADALBERTO -- Primeiro toca seu café, Luísa. Você só vai voltar depois de uma hora e sem comer nada.

VIRGÍNIA -- Olha: eu só não como mais porque eu estou de dieta, mas se não... Eu atacava.

ADALBERTO -- (ADVERTINDO) Senta direito, Ricardo!

RICARDO -- Te enxerga, cara. Tu não manda em mim, não é meu pai.

ADALBERTO -- Eu sou mais velho que você, Ricardo. Me respeite!

RICARDO -- Vai arrumar outra coisa pra fazer, Adalberto. Me deixa em paz!

ADALBERTO -- Você me respeite, seu Ricardo, que eu não sou um dos seus amiguinhos, não. E vai vestir uma camisa que o ar ainda tá frio e você pode pegar um resfriado.

Ricardo levanta-se da cadeira num salto.

RICARDO -- Será que nessa casa, agora, tudo é regulado? Que droga! Um dia eu ainda vou embora daqui.

Ele pega um copo com suco e joga na parede exactamente na altura onde há um quadro pendurado. O copo estilhaça-se em vários pedacinhos minúsculos, fazendo com que o quadro caia ao chão e a parede fique completamente húmida com o líquido. Luísa toma um susto, assim como Virgínia que engasga com a parte da torrada que tem na boca. Adalberto levanta-se, tentando impor respeito. Ricardo corre pro seu quarto.

ADALBERTO -- Ricardo, volte aqui. Nós precisamos ter uma conversa de homem pra homem.

Adalberto sai acompanhando Ricardo. A campainha, neste momento, toca.

LUIZA -- Pode deixar que eu atendo.

Um tanto abatida com o que acabara de acontecer, Luísa dirige-se à porta da frente da casa, situada na sala. Ela a abre e de pé do lado de fora da casa está um homem muito bem vestido.

CÂMERA: DETALHE do nome DIÁRIO FLUMINENSE bordado no bolso da camisa.

HOMEM -- A dona Helena Mainardi está?

LUIZA -- Ela tá dormindo, porque ela chegou muito cansada ontem. Se o senhor quiser, o senhor diz o recado pra mim que depois eu passo pra ela.

HOMEM -- Quando ela acordar, diga a ela, por favor, que o senhor Tomás, dono do Diário Fluminense, está esperando ela na redacção do jornal o mais rápido possível. Muito obrigado!

LUIZA -- De nada.

O homem sai e Luísa fecha a porta a chave. Ela fica com uma expressão interrogativa.

Bellini, Marta e Dart estão tomando um caprichado café da manhã assim como da casa de Helena. É uma casa bastante ampla, com o que há de mais moderno na época. Pelo ambiente, vemos quadros bastante bonitos espalhados por todas as paredes, plantas e esculturas também. É perceptível que tudo isso se deve ao cuidado especial de Marta.

MARTA -- Vocês estão animados com a viagem?

BELLINI -- Eu estou, mas estou me sentindo culpado por não levar você.

MARTA -- Relaxa, Bellini, eu que não quero ir. Acho melhor ficar aqui no Brasil, mesmo, porque eu vou acabar atrapalhando vocês.

BELLINI -- Claro que não, Marta. Isso é um absurdo!

DART -- Eu concordo com o Bellini, dona Marta.

A campainha toca. Dart levanta-se deixando a torrada em seu prato. Marta faz menção de se levantar também, mas Dart não deixa. Ele dirige-se a porta da frente e a abre. Sem ao menos pedir licença, Bismarck vai entrando.

BISMARCK – Onde está o Bellini?

Dart não sabe o quê fazer. Ele hesita ainda com a porta aberta. Chegam, neste momento, Bellini e Marta. O primeiro com o cenho franzido, a segunda completamente perdida. A música marca.

BELLINI -- Estou aqui, Bismarck. O que é que você quer?

BISMARCK -- Eu vim aqui só pra dizer que você vai encontrar bastante dificuldade pra investigar aquele Sudário, professorzinho. Eu também vou estar lá. E pode ficar certo como vai ser pau duro. Então, se você quiser, companheiro, pode desistir logo agora.

BELLINI -- Sinto muito, Bismarck, mas eu vou ter que te decepcionar, assassino!

BISMARCK -- (REAGE) Assassino?!

BELLINI -- Foi você que mandou matar o Osório, não foi?

BISMARCK -- Claro que não. (SEM ENTENDER) Eu nem estava sabendo que ele tinha morrido.

BELLINI -- Não adianta se fazer de desentendido que eu sei muito bem. Não sei nem, porque eu não te denuncio pra polícia.

BISMARCK -- Porque você não tem provas, meu caro. Vai ser a minha palavra contra a sua. (PAUSA) Bom, já estou indo. O recado está dado. (OLHANDO-OS, CÍNICO) Passem muito bem!

Bismarck sai em disparada. Quando ele sai, Dart fecha a porta e eles entreolham-se.

Maurício entra no elevador e aperta um dos botões do painel, referente ao número do seu andar. Ele não está sozinho. Suspirando ao seu lado, está Andreia que tem nas mãos uma pilha de livros. Maurício tem uma expressão séria, parece não querer conversa. Andreia olha para ele de viés, com a cabeça um tanto baixa. Eles não trocam uma palavra durante o breve percurso. Quando o elevador pára, Maurício vai saindo. Ela clama por seu nome, mas ele já está longe e não pode ouvi-la. Ela chuta a porta do elevador que se fecha.

Tomás está sentado na grande cadeira com estofos de couro atrás do bureau do escritório. Ele está pensativo, com as pontas dos dedos unidas. As estantes cheias de livros, presentes ali, são acopladas à parede, impossível de serem removidas. O fone toca e ele atende.

TOMÁS -- Estou? (PAUSA, FURIOSO) Manda esse cachorro entrar, porque eu ter uma conversa séria com ele.

Pouco depois, Marcello entra, timidamente, na sala.

TOMÁS -- O que é que você quer comigo? Veio pedir pra voltar? Pois fique logo sabendo que eu não vou deixar, nem se você beijar o solado do meu sapato.

MARCELLO -- Não, Tomás, eu não vim aqui pra isso.

TOMÁS -- Olha o respeito comigo, seu/

Marcello tira, rapidamente, uma arma da cintura, que mantivera escondida sob a blusa e mira-a na cabeça de Tomás. Marcello puxa o gatilho e a bala atinge a cabeça de Tomás, fazendo o sangue espirrar longe. Este último cai ao chão, morto.

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Bellini sentado ao sofá, pensativo, preocupado. Dart sentado mais à frente, em uma poltrona, lendo um livro, com uma aparência bem menos preocupada. Marta vem da cozinha, vestida com um avental já sujo, por cima da roupa, um prato molhado e um pano nas mãos.

MARTA -- Você tá se preocupando à toa, Bellini. Deixa isso pra lá.

BELLINI -- Como, Marta. É impossível. O Bismarck vai fazer o que ele prometeu, sim. Eu conheço ele faz bastante tempo e sei que quando ele promete uma coisa ele cumpre, sem piedade.

MARTA -- Mas o que é que você pode fazer contra ele? Nada. Ele prometeu que ia te impedir de concluir a pesquisa, mas ninguém pode denunciar, ou até mesmo prender alguém, por uma ameaça.

BELLINI -- Eu vou pro escritório. Qualquer problema pode me chamar.

CÂMERA: CORTA DESCONTÍNUO:

Bellini já entrando no escritório um tanto modesto em comparação com a sala da casa. Ele senta-se ao bureau e liga o pequeno abajur já que a iluminação é insuficiente. Ele abre uma gaveta, tira um livro de capa dura, coloca os óculos na ponta do nariz e começa a leitura:

BELLINI -- (OFF, GRAVADO) O homem tem sido uma força incansável a procura de respostas para questões inerentes a ele desde sua criação. De onde viemos? Para onde vamos? Embora sejam indagações aparentemente simplórias têm permeado o imaginário colectivo. Mas a resposta é simples: começamos onde terminamos. No nada.

Neste momento, Marta irrompe o escritório após bater fracamente do outro lado.

MARTA -- Desculpa. Eu quero pegar um livro.

CÂMERA: CORTA DESCONTÍNUO:

Duas mãos, trémulas percorrem, com certa dificuldade, a lombada dos livros empoeirados na parte final da estante. Em cima de um pequeno cavalete, Marta puxa um livro.

BELLINI -- Marta, por favor, pega aquele ali pra mim!

MARTA -- Claro. Qual esse aqui?

Ao pôr a mão em um dos livros, o cavalete cede e quebra uma perna. Marta tenta segurar-se na estante, mas ela vem junto, derrubando todos os livros ao chão. Felizmente, ela consegue não ser esmagada pela estante, mas desfalece. Bellini fica olhando, pasmo, sem esboçar reacção. Logo ao lado da cabeça de Marta, está um livro aberto na página que trata exactamente sobre o Sudário de Turim. É um vaticínio.

Luísa está escrevendo no quadro negro, enquanto a classe de mais ou menos 40 alunos copia, em completo silêncio. Donato bate do outro lado. Luísa vai abrir e pára de copiar. Quando ela o vê, ela faz uma expressão facial de ódio, enquanto ele, de arrependido.

DONATO -- Me desculpa, Luísa.

LUIZA -- Desculpa? Por quê? Nós não temos mais nada e você não me deve desculpa nenhum. Agora pode ir.

DONATO -- Calma, me deixa explicar.

LUIZA -- Explicar, Donato? Aquela mulher quase detalha o que vocês fizeram juntos e você ainda quer explicar? Faça me o favor, que eu tenho mais o que fazer.

DONATO -- Você não acha que tá exagerando e não tá me deixando explicar?

Luísa dá uma leve pausa. Olha pra baixo.

DONATO -- A Cláudia é só uma colega minha do trabalho.

LUIZA -- Ela precisava ficar horrorizada quando eu disse que era sua namorada? Não estou entendendo aonde você quer chegar.

DONATO -- (BEM CARA DE PAU) É que lá no meu trabalho a chefe disse que não quer ninguém casado ou namorando. Por isso que eu não queria que ela soubesse porque ela poderia ir contar pra chefe. E foi o que aconteceu. Você nem imagina, Luísa. Quase que eu era despedido.

Luísa, completamente furiosa com a mentira que Donato tentava aplicar sobre ela, bate a porta em sua cara, deixando-o do lado de fora.

Virgínia está assistindo TV, com um rostinho angélico. Adalberto vem de dentro da casa já devidamente arrumado para ir pra faculdade, com uma pasta debaixo do braço. Ele passa e dá um beijo na cabeça dela.

ADALBERTO -- Tchau, meu amor. Já vou pra faculdade. E fala pro Ricardo que quando eu chegar e ele desenfurnar daquele quarto a gente vai ter uma conversa bem séria.

VIRGÍNI -- Tudo bem, amor. Eu digo. Agora vai porque senão você se atrasa.

Soltando outro beijinho carinhoso com os lábios, Adalberto sai. Virgínia dirige-se à porta e, por um instante, fica hesitante. Até que sai seguindo, Adalberto. Na rua, ela está numa distância considerável dele. Ele atravessa a rua, desviando dos carros, anda mais um pouco, até chegar a um restaurante. Virgínia sempre atrás dele, reagindo aos caminhos tomados por ele. Pelo restaurante ser todo envidraçado, ela percebe que ele senta-se à mesa com uma mulher loira, bastante atraente. Virgínia fica mordendo-se de raiva.

VIRGÍNIA -- Você me paga, Adalberto. Você me paga!

Ricardo entra no bar. Uma fumaça densa de cigarros toma conta do ambiente. Atrás do balcão, o garçom gordo, com uma toalha branca no ombro, levanta-se para verificar quem chegou. O mesmo faz um bêbado com um copinho de cachaça e outros homens sentados em mesas espalhadas. Ricardo aproxima-se de um senhor de meia idade, ligeiramente calvo, que está sentado a uma mesa, fumando, e senta-se com ele. Seu cinzeiro está cheio de pontas de cigarro. O maço amassado de lado, já quase seco.

RICARDO -- Estou pronto pra ouvir a proposta.

HOMEM -- O carregamento chega... (TIRANDO UM PAPELZINHO DO BOLSO) Está aí. Pode ver.

RICARDO -- (APÓS LER) Certo, mas e quanto ao preço?

HOMEM -- Por ser um carregamento dessa categoria, vai custar caro.

RICARDO -- Eu quero saber só quanto vai custar.

HOMEM -- (FAZENDO SUSPENSE) Cem mil dólares!

RICARDO -- (REAGE) Mas isso é muito dinheiro!

HOMEM -- Eu sei, mas é o preço que se paga por um bom material. Você vai ter o melhor equipamento do mundo, meu rapaz.

RICARDO -- Bom, eu acho que eu posso arranjar.

HOMEM -- Então, apreça no local marcado, na hora marcada. Se você se atrasar eu passo a mercadoria pra gente que tá na fila há muito tempo.

RICARDO -- Será mesmo que tem gente assim querendo a mesma coisa que a gente?!

HOMEM -- Vossa Mercê me concede um aparte? Isso é mercadoria da boa, garoto.

RICARDO -- Então, tudo bem, eu vou aparecer.

Marcello está completamente perdido. Ele anda pelo escritório de um lado para o outro, sem saber o que fazer com o corpo de Tomás, estirado ali, já frio e duro. Marcello sua muito. Do outro lado da porta, uma empregada fardada clama por seu patrão, já um tanto desconfiada por conta da demorada, e tendo às mãos uma bandeja com duas xícaras de café e algumas bolachas, em uma porcelana bem fina e trabalhada, provavelmente importada.

EMPREGADA -- Senhor Tomás, eu trouxe um cafezinho e umas bolachas! O senhor vai querer?

Marcello empalidece e seus olhos arregalam-se.

A empregada parece estar sem a menor paciência. Ela não aguenta mais segurar a bandeja. Então, ela olha pelo buraco da fechadura e é exactamente, agora, que Marcello sai do escritório banindo qualquer possibilidade sua de ver o que se passava lá dentro. Ela se assusta e a bandeja desequilibra e quase cai.

MARCELLO -- Ele disse que não quer ser interrompido, porque ele está fazendo uma carta importantíssima e precisa de concentração. Ele disse que vai querer depois o café com as bolachas.

EMPREGADA -- (TENTANDO ARGUMENTAR) Mas, ele adorar café com bolachas, enquanto está trabalhando.

MARCELLO -- Hoje é um caso especial, por favor, tente entender. Seria melhor pra todos que você voltasse com o lanchezinho.

EMPREGADA -- (SEM ENTENDER) Bom, se você está dizendo! Mas eu ainda acho muito estranho ele ter negado essas bolachinhas.

MARCELLO -- Tchau.

A moça sai, ainda sem entender. Marcello volta e tranca-se no escritório.

Sentado na sua própria cadeira, o delegado, folgadamente, tem os pés em cima do seu bureau. Lá, entre outras folhas de papéis com algum significado, está o relatório com os dados do caso do cientista Osório. O delegado quase não cabe em suas roupas de tão gordo, embora coma com voraz gula, um sanduíche de um "fast food" barato. Os homens que se encontraram com Bismarck na Cena 05, cap.01, voltam a aparecer. Eles irrompem a sala, vestidos de ternos bem cortados. O primeiro traz uma maleta. Agora serão conhecidos como os Homens de Terno.

DELEGADO -- (COM COMIDA NA BOCA) Quem são vocês? O que é que vocês vieram fazer aqui?

HOMEM DE TERNO 1 -- Calma, delegado.

HOMEM DE TERNO 2 -- Nós queremos tratar um assunto com você de extrema importância.

HOMEM DE TERNO 3 -- Esperamos que coopere.

DELEGADO -- Primeiro eu quero saber quem são vocês. Depois, o que vocês querem.

HOMEM DE TERNO 1 -- Nós somos os Homens de Terno. Agimos pela manutenção da paz.

HOMEM DE TERNO 3 -- E pelo bem comum.

DELEGADO -- Vocês são de alguma ONG?

HOMEM DE TERNO 1 -- Isso não vem ao caso, senhor delegado. Partamos logo pra proposta.

HOMEM DE TERNO 2 -- (PEGANDO O RELATÓRIO DO CASO OZÓRIO E EXIBINDO) Soubemos que estava de saída para a casa do cientista Bellini para investigar a morte de seu colega Osório.

DELEGADO -- Bom... Estava, sim, mas e daí?

HOMEM DE TERNO 3 -- Queremos lhe oferecer o valor que está aí nesta maleta para que o senhor desista agora mesmo e arquive o caso.

DELEGADO -- Mas eu não posso! Não vou fazer uma loucura dessas! É meu emprego que está em jogo! Eu tenho filho pra alimentar!

HOMEM DE TERNO 1 -- Tenha calma, delegado. Olhe quanto tem dentro da maleta, por favor.

O Homem de Terno 1 aproxima a maleta das mãos do delegado. Ele abre e lá estão várias notas de cem dólares. Ele fecha-a rapidamente como se aquilo fosse algo impuro, impróprio de ser visto.

DELEGADO -- (HESITANTE) Bem, sendo assim.

HOMEM DE TERNO 2 -- Saia desse antro de marginais. Mude-se de cidade e monte um negócio. Temos certeza com você vai viver melhor.

HOMEM DE TERNO 1 -- Negócio fechado!

Os três obrigam o delegado a trocar com eles um aperto de mão, antes de sua partida.

Por detrás de um alto balcão de mármore, uma recepcionista de estatura mediana exerce seu trabalho. Helena e Medeiros chegam. Este indaga:

MEDEIROS -- Desculpe está interrompendo alguma coisa, mas nós precisamos falar com o Tomás, ele chamou a gente aqui.

RECEPCIONISTA-- Olha: ele já deveria ter voltado. Se vocês quiserem podem esperar, sentados numa dessas cadeiras por aqui.

MEDEIROS -- Acho melhor não. Eu e ela estamos perdendo um dia de serviço.

HELENA -- Ele mandou avisar que era algo urgente, que estava esperando por a gente o mais rápido possível. Você sabe onde é que a gente pode encontrá-lo?

RECEPCIONISTA-- Não. Façam o seguinte: deixem o nome de vocês que quando ele chegar, eu entro em contacto e comunico se ele vai ou não atender vocês.

HELENA -- Helena Mainardi e/

RECEPCIONISTA-- Helena Mainardi?! (ENTREGANDO UM PEQUENO PEDAÇO DE PAPEL) Esse é o endereço da casa dele. Ele disse que vocês poderiam ir até lá, sem problemas.

Helena e Medeiros entreolham-se um tanto assustados.

Medeiros estaciona o carro exactamente na frente da casa de Tomás, onde, olhando pelos portões via-se o casarão antigo e na frente uma piscina, com um charmoso jardim de plantas exóticas. Eles descem do carro, já comentando.

MEDEIROS -- Casarão, meu Deus do Céu!

HELENA -- (COM RECEIO) Eu tô com medo de entrar aí, Medeiros.

MEDEIROS -- Por quê?

HELENA -- Não sei. Eu estou com um pressentimento ruim. Eu acho que algo de ruim está prestes a acontecer.

MEDEIROS -- Vamos! Você está assim só porque o casarão é velho. Só isso!

Finalmente próximo aos portões, Medeiros toca a campainha. Assim que isso ocorre, vem de dentro da casa, correndo numa velocidade espantosa, Marcello. A arma está em punho e ele a tem apontada para dentro, de onde vêm os serviçais, também num ritmo frenético. Ele faz dois disparos. Helena e Medeiros abaixam-se. Este cai por cima dela tentando protegê-la. Marcello passa por cima do jardim exótico até chegar nos portões. Ele depara-se por alguns segundos com os dois inertes, tentando proteger um ao outro das balas, mas logo tem que ganhar distância do lugar a fim de não ser capturado. Marcello vai atravessando a rua e quase é atropelado por um carro. Um dos empregados que participaram da curta perseguição pára ao portão.

HELENA -- Meu senhor, o que é que tá acontecendo? Por que o Marcello saiu desse jeito?

EMPREGADO -- Entrem, por favor. A gente está precisando de ajuda. Vocês vão entender porque ele saiu assim, correndo.

Marta deitada na cama de casal de Bellini, ainda roxa, machucada, dolorida. O médico, de jaleco branco, colocando o auscultador dentro de uma caixinha especial. Bellini está sentado na cama, aos pés de Marta, preocupado.

BELLINI -- Então, doutor?

MÉDICO -- Deixa ela descansar. Foi só o susto. Olha: essa sua mulher é um robô. Quase não se machucou. Agora, vamos sair um pouquinho. A gente conversa lá em baixo.

BELLINI -- Tudo bem.

Ele dá um beijo em sua testa, afaga seu rosto, carinhosamente, e sai, acompanhado do médico. Os dois conversando. A porta bate. A luz do sol parece ser coberta por uma sombra momentânea, mas não. De repente, uma luz artificial, vinda da janela, aumenta sua intensidade até ficar quase que insuportável. Marta, que não percebera nada disso, começa a se sentir incomodada. Ela abre os olhos, mas a luz é muito forte. Logo, ela põe a mão para divisar melhor. Sombras invadem seu quarto e fazem um círculo ao redor da cama. Marta começa a sair do chão. Ela flutua. Marta começa a subir, e subir, e subir, e subir.

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Ainda não consegui ler a história toda, mas vou fazê-lo de bom grado. Não vou voltar a salietar, sob pena de repetição, a excelente qualidade da escrita. Apenas digo que para uma história como esta todos os capitulos têm uma coerência incrivel, muito dificil de manter. Está tudo claro e decifrável, não se tornando, contudo, óbvio. Isso agrada-me. O tema também me é bastante "querido" por isso, não posso negar que a própria proiximidade que tenho ao assunto me influencia quando leio, ou melhor bebo, cada linha.

Parabéns...nem vale a pena dizer que continues, porque fá-lo-ás, certamente. ;)

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Marta continua subindo e dirigindo-se a uma luz fortíssima que ultrapassava os limites do quarto. Ela, agora, é encandeada por essa luz.

CÂMERA: PANORÂMICA do quarto: Vemos uma enorme nave espacial sugando Marta.

Ela começa a debater-se, mexer-se, tentando livrar-se do seu destino infausto. Ela parece ouvir a voz de Bellini vindo de trás dela e dizendo:

BELLINI -- (OFF) Calma, Marta. É um sonho. É tudo um sonho.

Marta abre os olhos de supetão. A luz fortíssima e artificial era provocada pelo abajur, no criado mudo, ligado por Bellini. A voz que ouvira há pouco era realmente de seu marido que, sentado ao seu lado na cama, tentava acalmá-la. Ao situar-se no tempo e no espaço, Marta senta-se e olha para Bellini, de forma estranha.

MARTA -- Eu tive um sonho terrível.

BELLINI -- Calma, agora já acabou.

Marta olha para a janela que está com as cortinas fechadas, impedindo a passagem da luz do sol. Uma brisa suave as faz flamejar.

Medeiros, Helena e o empregado 1 estão chegando à porta do escritório de Tomás. Este último fazendo uma pequena explanação sobre o que acontecera faz alguns instantes. Há um entra e sai de empregados, constante no recinto. Eles entram receosos, e saem abismados. Helena e Medeiros entreolham-se antes de desferir os primeiros passos dentro do escritório. Finalmente, eles entram e vêem uma cena deprimente (ad libitum). Helena põe as mãos sobre o rosto e afunda-se no peito de Medeiros para não ver nada.

HELENA -- Vamos embora, Medeiros. Eu falei que algo de ruim iria acontecer, não falei?

MEDEIROS -- Vamos, vamos embora. Mas primeiro a gente precisa ligar pra polícia. (P/ EMPREGADO 1) Mas primeiro tem que ligar pra polícia.

EMPREGADO 1 -- A Neusa já ligou. Ela falou pra mim que eles estavam já chegando.

HELENA -- Deixa isso pra lá, Medeiros. Não sei com eu fui aceitar entrar aqui se eu sabia o que eu ia encontrar.

MEDEIROS -- (OLHANDO PARA O CADÁVER, PASMO) Tudo bem. Vamos.

Maurício vai saindo de seu apartamento. Ele está de banho tomado, bem arrumado e com uns papéis debaixo do braço. O porteiro está ajeitando a campainha de um dos apartamentos do pequeno andar. O interrupto já foi retirado deixando à mostra um bloco de fios multicoloridos desencapados. Ele fecha a porta de chave e vai saindo quando, do apartamento ao lado, assoma Andréa. Ela percebe que ele vai embora e apressa-se a indagar:

ANDRÉA -- Vai sair, Maurício?

MAURÍCIO -- Vou pra faculdade.

ANDRÉA -- Eu preciso te falar uma coisa.

MAURÍCIO -- Eu já estou atrasado, Andréa. Quando eu chegar você me fala, estamos combinados?

ANDRÉA -- Por favor, Maurício. Me escuta!

MAURÍCIO -- Me escuta, você, Andréa! (UM TANTO ARROGANTE) Eu tenho que ir pra faculdade, dá pra entender?

Andréa abaixa a cabeça, decepcionada. Ele, definitivamente, sai. Como se nada tivesse ocorrido, Andréa aproxima-se do porteiro.

ANDRÉA -- E aí? Você trouxe a chave?

PORTEIRO -- (ENTREGANDO A CHAVE) Olha, dona Andréa: vê lá o que é que a senhora vai fazer?! Vê se você se lembra que pra todos os efeitos...

OS DOIS -- ... Eu não tenho nada a ver com isso.

ANDRÉA -- Eu sei. Agora continua seu trabalho, porteiro-zelador. (RI)

Andréa, toda felicidade, vai testando as chaves na fechadura da porta do apto. de Maurício até encontrar a certa. Andréa entra. A sala do apartamento é totalmente desorganizada. Entre livros e cadernos, residem copos e pratos vazios. Pelo chão, algumas almofadas que deveriam estar no sofá. Na antena da TV, uma palha de aço a fim de uma melhor captação da imagem. Andréa fica, por determinados segundos, olhando aquilo com carinho inigualável. Ela pega uma das almofadas e afaga, cheirando seu odor como se fizesse isso com o próprio Maurício. Ela pega o copo que está em cima da mesinha de centro e coloca sua boca em sua borda, como beijando Maurício. Música romântica marca. No corredor, o porteiro-zelador continua consertando a campainha quando Maurício retorna, vindo de um andar abaixo. O porteiro gela, fica inerte, inerme.

PORTEIRO -- Aconteceu alguma coisa, seu Maurício?

MAURÍCIO -- (RINDO) Saí tão apressado que acabei esquecendo meu livro.

PORTEIRO -- (SUANDO) Ah, tá.

Maurício entra. Antes de fechar a porta, Maurício vê Andréa sentada em seu sofá.

MAURÍCIO -- Andréa, o que é que você está fazendo aqui? Como é que você conseguiu a chave?

Andréa não fala nada. Maurício com uma expressão terrível no rosto.

Marcello senta-se numa cadeira encostada a parede. Atrás de uma mesa, uma moça magra atende os telefonemas e faz algumas anotações em duas agendas. Marcello espera impaciente. O ambiente é bem iluminado, porém não é infestado de janelas. Tem apenas uma envidraçada e bem pequena, comparada a outros padrões, próxima ao baixo teto. Um ventilador antigo gira incessantemente numa velocidade incapaz de produzir qualquer vento refrescante. A primeira porta, com um vidro fosco e uma plaqueta com o nome: ALDABERTO MAINARDI, abre-se para a saída de uma mulher gorda e de Adalberto.

ADALBERTO -- Tchau, Dona Antónia. (OLHANDO P/ MARCELLO) Pode vir.

Marcello levanta-se num salto e entra. O escritório de Adalberto é pequeno: tem apenas um bureau e algumas cadeiras. Marcello senta-se, confortavelmente e Adalberto faz o mesmo do outro lado do bureau.

ADALBERTO -- E então? Qual é o problema?

MARCELLO -- (TIRANDO UM PAPEL DE DENTRO DA ROUPA) Eu quero saber o que é isso aí. Que direitos eu tenho.

ADALBERTO -- (APÓS LER) Bom, isso é documento passando os bens do senhor Tomás para o senhor Marcello.

MARCELLO -- Marcello sou eu.

ADALBERTO -- Na verdade, seu Marcello, você só poderá usufruir desses bens depois da morte do senhor Tomás.

MARCELLO -- (FRIO) Ele já morreu.

ADALBERTO -- Então o senhor é dono de tudo o que é dele. Você só vai precisar de um advogado pra legalizar sua situação.

MARCELLO -- Pode ser você?

ADALBERTO -- Claro que pode. Então, o senhor passa aqui amanhã pra gente conversar melhor, tá certo?!

MARCELLO -- Tá certo.

Os dois trocam um forte aperto de mão. Música marca.

O sol castigava impiedosamente a estrada. Ao lado do asfalto, uma grande área plana, sem vegetação e, bem ao longe, algumas montanhas, caracterizando uma típica região do sertão nordestino, ou do deserto texano. Um carro desponta no início do declínio feito pelo asfalto. A quentura faz com que o veículo pareça uma miragem, isto é, uma imagem tortuosa, mal acabada. Logo vemos que é um carro velho, dirigido por Ricardo e, no lugar do carona, seu amigo. Eles vêem conversando, tensos. Quando chega num determinado local, Ricardo estaciona no acostamento e olha, procurando algum sinal humano. De repente, um caminhão enorme vem seguindo um carro pequeno a toda velocidade. Os amigos entreolham-se já um pouco mais animados. Não tarda muito para que o veículo pequeno e o caminhão estacionem a frente deles. Ricardo desce do carro, pegando uma maleta preta que estava com seu companheiro, e aproxima-se do mesmo homem com que conversara no bar, entregando-o a maleta. O sujeito, fumando sempre, segura-a meio desconfiado, jogando um olhar para Ricardo.

RICARDO -- Agora me dá a mercadoria, vai!

O homem olha para o motorista do caminhão e faz um gesto qualquer. Este começa a buzinar, avisando aos policiais que agora apareciam em montes, vindos do horizonte plano. Ricardo fica sem entender nada, gela. Ele olha para o sujeito como que pedindo uma explicação.

HOMEM -- Nós ganhamos, Ricardo. Você tá preso, vagabundo!

Ricardo limita-se a arregalar os olhos e prender a respiração.

Os de antes, como antes.

RICARDO -- Você me enganou, seu traidor.

HOMEM -- Agora você pode se considerar preso, seu revolucionário.

RICARDO -- Isso é o que você pensa.

Ricardo tira a maleta das mãos do homem e acerta uma joelhada bem no meio de suas pernas, nos testículos. O homem se abaixa com dor. Então, Ricardo desfere, com as forças possíveis, a maleta em sua cabeça e o faz cair ao chão da Rodovia. Os tiros começam a ser disparados vindos dos policiais. Ricardo abaixa-se, protegendo-se, quando tiros acertam o pneu do carro do homem e o vidro do caminhão, fazendo o caminheiro pular do grande veículo. Os tiros e os policiais não param de se aproximar.

RICARDO -- (P/ SEU AMIGO) Vai embora, vai embora!

O amigo de Ricardo fica desesperado, um tanto atarantado, mas obedece-o, pulando para a cadeira do motorista e dando partida no carro. Em disparada e cantando pneu, ele sai e acaba atropelando o caminheiro que acabava de levantar-se do chão. Os tiros continuam. Ricardo entra no caminhão e dá partida, virando a chave no painel. Ele vai fugindo, sem rumo ou qualquer direcção. Os carros da polícia vão atrás dele. O homem, caído ao asfalto, somente agora se levanta apoiado por um policial que chegava.

HOMEM -- Pega ele, cara. Esse menino precisa ser preso.

POLICIAL -- Fica tranquilo que ele não escapa, não.

Virgínia e Adalberto estão sentados à mesa, almoçando. Ela está com uma tromba enorme. Ele, primeiramente, parece não notar, mas aquilo fica tão evidente que é impossível negar.

ADALBERTO -- Eu atendi um sujeito hoje, Virgínia, mas eu o achei tão estranho. Ele não estava bem de maneira nenhuma. (SORRI, TENTANDO QUEBRAR O CLIMA) Mas não vamos falar de trabalho agora, não?! Como é que tá sendo o dia? (PAUSA) Achei que você tivesse ido pro shopping, visitar sua amiga. (MUDA DE TOM) Virgínia, o foi que aconteceu pra você estar assim tão...

VIRGÍNIA -- (COMPLETA) Tão diferente? Nada. Impressão sua... (CÍNICA) meu amor!

ADALBERTO -- Impressão minha, nada. Você tá diferente, sim. O que foi que eu fiz?

VIRGÍNIA -- (EXPLODE) O que foi que você fez, seu cínico?! Você me trai descaradamente e ainda pergunta o que foi que você fez? Eu vi, seu cachorro, você com aquela loira oxigenada no restaurante, hoje pela manhã, assim que você saiu. Você não tem vergonha, não, Adalberto?! O restaurante não é nem cem metros daqui! Eu sabia que você não prestava, minha mãe me avisou, mas, não. Eu burra, me casei pensando que você era o homem perfeito! Você é um cachorro. Isso sim!

Adalberto engasga com o garfo ainda dentro da boca. Ele termina de engolir o bolo de comida já formado e começa a dar boas e altas gargalhadas. Virgínia cruza os braços e continua com o rosto fechado. Ela começa a ficar incomodada com as gargalhadas de Adalberto.

VIRGÍNIA -- Do que é que você está rindo?

ADALBERTO -- (QUASE SEM CONSEGUIR FALAR) Você me viu com uma cliente, Virgínia. Não é nada disso que você tá pensando.

VIRGÍNIA -- Pode ser cliente, pode ser o que for, mas é traição.

ADALBERTO -- Virgínia, eu tenho certeza como você não me viu fazendo nada demais.

VIRGÍNIA -- (CONCORDANDO) Realmente, eu não vi nada demais, mas só pelo jeito como você olhava pra ela eu percebei que tinha traição no ar.

ADALBERTO -- (RINDO) Meu Deus, Virgínia, você me mata de rir!

VIRGÍNIA -- Pára de rir!

Adalberto continua. Nem a ouve.

VIRGÍNIA -- Pára de rir, Adalberto! Droga!

Virgínia levanta-se da mesa e entra corredor adentro. Adalberto percebe que não fora muito feliz com seu humor e vai atrás dela.

ADALBERTO -- Virgínia, me desculpa, meu amor!

Helena e Medeiros estão sentados à mesa de uma lanchonete, um tanto abalados. Eles beliscam alguma coisinha e bebem refrigerante. O clima não está nada bom.

HELENA -- Eu nunca pensei que o Tomás fosse morrer assim: assassinado.

MEDEIROS -- Nem eu. Era algo quase improvável.

HELENA -- Olha: o Marcello está super-encrencado.

MEDEIROS -- E outra coisa: algum objecto, ou jóia, ou dinheiro do cofre do Tomás deve ter sido roubado. Você ouviu quando o senhor disse pra gente que o cofre foi encontrado aberto e sem nada? Provavelmente, o Tomás deveria guardar alguma coisa no cofre. Eu não acredito que não servia pra nada, não.

HELENA -- Mas pra quê é que o Marcello vai matar o Tomás assim, sem mais nem menos?

MEDEIROS -- Pelo que eu andei sabendo, o Tomás maltratava demais o Marcello. Muitas vezes, o Marcello saiu chorando da redacção, por causa do Tomás.

HELENA -- O Tomás criou um cobra dentro de casa.

MEDEIROS -- Pois é. Por que será que o Tomás queria que a gente fosse falar com ele?

HELENA -- Não faço a menor ideia.

Ricardo entra, desesperado no galpão mal iluminado onde, no centro, quatro homens, mais ou menos da idade dele, e uma única mulher planejavam o sequestro de um político importante, olhando um mapa da cidade do Rio de Janeiro ao redor de uma mesa. A atenção de todos é voltada para Ricardo quando ele irrompe o lugar.

RICARDO -- Eu consegui despistar a polícia. Mas eles estão vindo atrás de nós.

MOÇA -- Por que, Ricardo?

RICARDO -- Aquele homem não era nada do que a gente estava pensando. Ele estava junto com a polícia pra pegar a gente.

MOÇA -- Agora a gente está perdido.

RICARDO -- Não sei. Mas eu aconselho que vocês mudem de sede o mais rápido possível. O Paulo? Chegou?

HOMEM 1 -- Não, ainda não.

RICARDO -- Ele tinha ido comigo. Se ele não chegar daqui a pouco, é porque ele foi pego. (MUDANDO DE TOM) Vocês têm um carro disponível e munição?

HOMEM 2 -- Temos. Está ali atrás.

RICARDO -- Eu vou fugir pra São Paulo.

Ouvindo estas palavras, a moça encolhe-se na sua cadeira. Ela sofre.

HOMEM 2 -- Você está maluco, Ricardo? A primeira coisa que eles vão fazer pra conseguir pegar um sujeito procurado como você é fechar todas as saídas da cidade: aeroportos, portos, fronteiras.

RICARDO -- Eu vou trocar minha carteira de identidade, passaporte, nome, tudo. Quando eu chegar em São Paulo, já vou ser outra pessoa. (PAUSA) Eu preciso sair do país, urgentemente.

HOMEM 1 -- Em São Paulo, eles te encaminham pra outro país. Acho que você vai pra Itália. Eles estão precisando de pessoal lá.

RICARDO -- Eu preciso ir.

Ricardo olha para a moça e ela está triste, de cabeça baixa, olhos mirando o chão vazio.

A porta abre-se e vemos que os responsáveis por isso são Helena e Medeiros que agora adentram a casa, um tanto distraídos. Sentados no sofá e em uma poltrona, respectivamente, estão Marcello e Adalberto. Neste momento, quando eles percebem, eles reagem, ficando inertes. Marcello levanta-se do sofá com certo prazer e fala num tom agradável, algo desagradável:

MARCELLO -- Bom, como eu não tenho muito tempo pra perder com vocês, eu vou directo ao ponto: agora, que eu tenho poder e dinheiro, o que é muito importante, eu vou te processar, Medeiros, e fazer você apodrecer dentro de uma penitenciária até o fim da sua vida.

Reacção de todos.

Episódio 11

Os de antes, como antes.

HELENA -- Você ficou maluco, Marcello? Não foi culpa do Medeiros.

MARCELLO -- Cala a boca, Helena. Você não sabe de nada.

ADALBERTO -- Por favor, não vamos começar uma discussão. Olha o nível!

MARCELLO -- Agora eu posso ir embora, porque eu já disse o que eu tinha que dizer. Você está avisado, Medeiros. Pode começar a procurar um bom advogado.

MEDEIROS -- Acho que quem tem que arranjar um bom advogado é você. Já sei quem vai advogar em meu favor: o Adalberto.

MARCELLO -- (REAGE) Claro que não, Medeiros. O Adalberto é meu advogado, querendo vocês ou não.

ADALBERTO -- Espera um pouco, Marcello. Você não tá pensando que eu vou deixar de defender minha família pra ir defender você, não é?

Marcello fica pasmo, desmoralizado, e não consegue falar nada. Longo silêncio, então:

MARCELLO -- Tudo bem. Todos estão contra mim. Mas vocês vão ver. Você, Adalberto, principalmente, vai me pagar muito caro por não ter me apoiado.

HELENA -- Olha, Marcello: ele trabalha pra quem ele quiser. É um direito dele. (PEQUENA PAUSA) Por favor, agora, se retire. Você já falou, já rogou praga, já ameaçou... Agora, fora daqui!

MARCELLO -- Só mais uma coisinha: a casa em que o Tomás morava, o Diário Fluminense, as acções, os imóveis, tudo agora é meu.

Marcello vai saindo furioso.

CENA 02. EDIFÍCIO DE MAURÍCIO. CORREDOR. APTO. SALA. INTERIOR. DIA

Maurício joga seus livros no sofá junto com as chaves. Ele abre a porta como se mandasse Andréa embora. O porteiro-zelador fica vendo toda a cena. Andréa olha-o e faz uma expressão carrancuda como se fosse dele a culpa por Maurício ter regressado.

MAURÍCIO -- Sai daqui, Andréa. Não quero mais ver você, nem pintada.

Andréa levanta-se, com pesar, e vai andando para a porta, após olhar todo o apto mais uma vez. Ela passa por Maurício como se não o conhecesse. Porém, antes de sair completamente, Andréa volta-se para ele e, caindo ao chão, suplicando numa voz chorosa, ela se segura ao seu braço.

ANDRÉA -- Por favor, Maurício, me deixa ficar. Por que é que você tem tanto ódio de mim?

MAURÍCIO -- (LEVANTANDO-A) Eu não tenho ódio de você, eu tenho nojo. Sabe por quê?

Maurício carrega-a para dentro e fecha a porta. O porteiro-zelador fica triste, pois perdeu o espectáculo. Ele volta ao serviço. Dentro do apartamento, Andréa já está sentada ao sofá, com a cabeça baixa, quase entre as pernas, chorando copiosamente.

ANDRÉA -- A gente se ama, Maurício, não tenta negar isso.

MAURÍCIO -- Não, Andréa. Não! A gente se amou. É diferente! Você faz parte do meu passado e acabou. Você quer trazer uma coisa que não existe mais na gente.

ANDRÉA -- Não, Maurício, você que não vê que a gente pode ser feliz, juntos. A gente dá certo.

MAURÍCIO -- Eu não te amo mais, Andréa. Entende isso!

ANDRÉA -- Eu quero só que você me deixe te amar. O amor entre a gente vai nascer com o tempo, você vai ver.

MAURÍCIO -- Não, Andréa. Você tá propondo casamento, filhos, uma casa minúscula, provavelmente, longe da faculdade. Não é isso que eu quero. Eu prezo minha liberdade. E muito.

ANDRÉA -- Eu pensei que aquela noite tivesse significado alguma coisa.

MAURÍCIO -- Você me dopou, Andréa. Eu tava bêbado. Foi um acidente, que não deveria ter acontecido.

ANDRÉA -- (CHORA MAIS) Por favor, Maurício, eu quero ser feliz ao seu lado.

MAURÍCIO -- Acho que já conversamos demais. Se você me der licença, eu preciso ir pegar meu livro, pra eu não chegar muito atrasado, porque atrasado eu já estou.

Maurício entra pelo corredor e some. Logo, ele volta com um livro na mão e assusta-se: não há ninguém na sala e a porta está completamente escancarada. Ele vai até lá e olha para os dois lados do corredor. Somente o porteiro-zelador consertando a campainha do apto do vizinho da frente. Maurício fecha a porta e fica pensativo.

Roma, Itália. Passamos por vários lugares marcantes em Roma. Música italiana marca essa passagem. Um avião jumbo chega na pista do aeroporto.

Estamos no escritório do responsável pelos produtos que passam pela alfândega italiana. É um escritório pequeno, apertadíssimo, mas bastante organizado. No bureau, do senhor Laganà, alguns clipes de papel, um grampeador, uma máquina de calcular, canetas, lápis, um terço, um computador, impressora e, para transformar o escritório num ambiente climatizado, um ar-condicionado. Além disso, há uma placa dourada com seu nome à frente de todas as coisas em seu bureau. Bismarck entra, um tanto atarantado. Laganà o manda sentar um gesto. Bismarck obedece, agradecendo, num péssimo italiano:

BISMARCK -- Grazie.

LAGANÀ -- Parli, per favore.

BISMARCK -- Il mio nome é Bismarck. Sono germano, "portoghese" "naturalizato".

LAGANÀ -- Si.

BISMARCK -- Mi scusi, ma non parlo molto bene italiano.

Laganà ri. Ele começa a falar português com sotaque de um brasileiro

LAGANÀ -- Tu não vais encontrar problema.

BISMARCK -- Ainda bem que fala a minha língua.

LAGANÀ -- Mas, afinal, qual o problema?

BISMARCK -- Preciso que o senhor faça um favor pra mim.

LAGANÀ -- Que favor?

BISMARCK -- Preste bem atenção: estou disposto a oferecer o quanto quiser por esse pequeno favor, senhor Laganà.

Laganà franze as sobrancelhas.

LAGANÀ -- Diga! Qual o favor?

BISMARCK -- Um cientista chamado Antônio Bellini está para chegar aqui na Itália. Ele vem trazendo uns equipamentos pra fazer uma pesquisa. Gostaria que o senhor impedisse que ele conseguisse trazer os equipamentos, porque sua pátria vai sair prejudicada.

LAGANÀ -- Mas se é para o bem do mundo. Não me importo.

BISMARCK -- Mas o senhor se importa se eu disse que ele está disposto a desacreditar o Sudário de Turim? Ele quer provar que a fé é pura idiotice.

Laganà reage. Ele pega o terço que está ali por cima e o beija, rapidamente.

LAGANÀ -- Podes deixar. Nada deste tal de Bellini vai passar aqui na alfândega.

CENA 05. CASA DE HELENA. SALA/SALA DE JANTAR. INTERIOR. DIA

Ricardo irrompe a sala e vai entrando pela casa sem nem falar com Helena e Medeiros que, sentados ao sofá, conversavam preocupados.

HELENA -- Oi, Ricardo. Tudo bem?

Ele não responde e adentram ainda mais a casa. Helena fica um pouco atarantada.

HELENA -- Espera um pouco, Medeiros.

Medeiros balança a cabeça em sinal positivo, então, Helena levanta-se do sofá e corre atrás de Ricardo para tentar segurá-lo, antes de sua entrada em seu quarto. Na sala de jantar, Helena chama-o mais uma vez e ele volta-se para ela, um tanto sem paciência.

RICARDO -- Não adianta tentar me impedir porque eu só tô passando aqui pra pegar umas roupas. Eu tô indo embora de casa.

Medeiros irrompe a sala de jantar e ainda consegue ouvir o final da conversa. Ele, assim como Helena, fica abismado.

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