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Livro de Contos


Bloody

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"Quem conta um conto, acrescenta um ponto."

 

Livro de Contos: o novo projeto de ficção do aTV.

 

Na sua definição, conto trata-se de uma narrativa breve e fictícia. A sua origem perde-se ao longo da história. Apresenta um grupo reduzido de personagens e um argumento pouco complexo. Servem para entreter, persuadir, ou até mesmo educar quem o lê. É, também, uma das maneiras de escrever vários sentimentos humanos. O amor, a amizade, a dor de uma perda, o ódio, o medo. 

 

O que então esperar deste Livro de Contos? Sete contos. Sete histórias, diferentes entre si, mas todas centradas no mesmo: o Homem. Neste pequeno projeto, serão apresentadas diferentes prespetivas daquilo que forma a Vida. Porque ninguém é igual. 

 

Os sete contos então a publicar serão os seguintes:

 

- 1: "A Tragédia"

- 2: "O Sonho"

- 3: "Os Momentos"

- 4: "A Vingança"

- 5: "A Inversão"

- 6: "A Carta"

- 7: "A Visita" (terá duas partes)

 

Cada conto será publicado sábado de cada semana, sendo que o último conto será publicado dia 23 de Agosto. O primeiro será publicado já amanhã.

 

Um pequeno excerto de "A Tragédia":

 

 

A música no piano tinha cessado. As pessoas olhavam para mim com uma expressão agora reprovadora. O ambiente tornara-se pesado. Eu continuava parado em cima do pequeno altar. Ele tinha que vir, tinha-me prometido. Promessas não são para quebrar. Uma vez quebradas, podem gerar um estado de conflito interior, que é guardado para sempre. Seria uma falsidade, algo para eu acreditar, algo para me tornar feliz para depois ser destruído?

 

Não percas, amanhã, a estreia deste novo projeto. Mesmo que sejam histórias fictícias, esta poderia ser a tua história. Espero por ti.

 

 

 

 

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"As nossas tragédias são sempre de uma profunda banalidade para os outros." (Oscar Wilde)

 

1 - A TRAGÉDIA

 

Tinha chegado o casamento. Finalmente, aquele era o momento esperado.

 

Lembrava-me claramente o dia em que me pediu para me casar com ele. O sol lá no alto, os corações juntos na terra, estes à espera de serem unidos pelo matrimónio. Se havia medo? Havia muito medo. Mas, por amor, os maiores medos são facilmente ultrapassados. Porém, a homossexualidade era um assunto ainda tão... tabu. Alvo de preconceitos, cheio de estereótipos. Mas, enfim, eu acreditava que Deus criou o Homem à sua semelhança, e Deus quis que todos os homens fossem felizes. Eu era feliz assim, e não achava que deveria ser julgado por ser feliz. A felicidade porém, incomoda até o mais profundo ser. E há tantos que não me compreendem...

 

Mas o grande dia tinha chegado. Tudo tinha sido ultrapassado até lá. Estava nervoso no meio de tantos sorrisos presentes naquilo que parecia ser uma igreja. O fato estava bem passado, o gel no cabelo colocado e os sapatos brilhantes calçados. E o tempo passava, e não parava. Até que passou em demasia.

 

Não havia volta a dar. O meu noivo estava atrasado, e não havia sinais do mesmo. O inevitável assombrava o pensamento de cada um presente na igreja.

 

A música no piano cessara. As pessoas olhavam para mim com uma expressão reprovadora. Não, ele não vem. Sim, já devia ter vindo. Talvez, eu fiquei abandonado no altar. O ambiente ficava cada vez mais pesado. Eu continuava parado, em cima das escadas. Ele tinha que vir, tinha-me prometido. Promessas não são para quebrar. Uma vez quebradas, podem gerar um estado de conflito interior, que é guardado para sempre. Seria uma falsidade, algo para eu acreditar, algo para me tornar feliz para depois ser destruído?

 

Entretanto, algumas pessoas chegaram, mas nenhuma delas era o meu noivo. Tinham destruído a porta de entrada com violência. Eram os selvagens. Tinham armas nas mãos, e máscaras nos rostos. Começaram a berrar várias sentenças, e eu entendia várias. Homossexualismo é um pacto do diabo. Todos vós sois filhos do diabo. Todos vós deveis morrer. E as armas foram accionadas, as balas foram disparadas. Atravessavam corpos, paredes, bancos. Um morto é caído no chão, uma pessoa ferida é atirada à parede.

 

O pânico tomou conta de mim. Atravessou para centímetro do meu corpo. Pessoas que amava eram mortas à minha frente. O meu dia estava a ser esmagado por aqueles que não gostavam da minha felicidade. Era apenas um dia, onde o mundo estaria, a meu ver, iludido em felicidade. Nunca tive algum momento como esse, e hoje teria finalmente essa sensação.

Sentia o meu coração a despedaçar-se. Sentia-o a cair no chão e a partir-se em pedaços que não conseguia agarrar. Cai no chão. Um grito explodiu da minha garganta. Outros gritos foram ecoados.

 

Mas não podia ficar no chão. Não podia morrer. Nem eu, nem ninguém. Levantei-me e saí para foram, enquanto as chamas irrompiam a entrada da igreja. Uma destruição exterior que corroía o interior.

 

Mas, então, o culminar da dor. O meu próprio sofrimento. Um ponto de horror alucinante nas costas, que me deita abaixo. Não consigo mais lutar, e caio no chão. Sinto agora a relva exterior da igreja, vejo o céu limpo lá no alto. Observo a destruição geral. Tudo começa a ficar búzio. Tudo começa a desvanecer-se. Perderia tudo. A dor da bala torna-se insignificante. A perda supera essa dor.

 

Foi, então, que o vi. O meu noivo. Não havia, afinal, nenhuma promessa quebrada. Todo o amor foi novamente juntado. Corria em minha direcção e não continha as lágrimas. Sentia o fogo que o queimava dentro de si, pois também queimava a mim. Éramos, agora, só um. Não houve casamento, mas a nossa união estava feita.

 

Abraçou-me. Sangrava e estava fraco. Soluçava também. Nunca a palavra “Amo-te” soou tão perfeitamente da boca dele. No meio da destruição, os seus braços eram um globo protector de tudo à minha volta. Nenhuma coisa agora nos conseguia destruir. Estávamos completos. E não seria o nosso fim. Era, então, a altura de o deixar. Já não havia mais nada a fazer. E a escuridão tomou conta de mim.

 

Pelo menos tinha morrido nos braços dele. E o dia acabou imaculável, aos olhos de Deus e aos olhos dos Homens.

 

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Próximo Sábado, "O Sonho":

 

 Estava no meu quarto, é pintado de azul, é a cor dos sonhos, e é pintado de amarelo, é a cor da felicidade. E o teto, é pintado de branco, era o símbolo da vida completa. E eu sou pintado de quê? Vejo-me no espelho e não encontro nenhuma cor que me identifique. Com o pincel, traço um sorriso falso. O mundo real é rodeado de falsidade, e a tristeza da falsidade faz-me pintar um sorriso irreal. Pinto para as pessoas pensarem que estou contente. Ao mesmo tempo que sou bombardeado pela falsidade corrosiva, sou obrigado a ser falso.

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"Sonhar é acordar-se para dentro." (Mário Quintana)

 

2 – O SONHO

 

Agarrei o meu sonho. Segura-o, mentalizei-me, não deixes que ele fuja.

 

Certa vez deixei fugir o meu sonho. Fiquei mal nessa altura, em que o sonho fugiu. Interiomente fiquei bastante instável. Fiquei fechado, completamente fechado, do mundo real. O mundo imaginário estava interdito. O sonho, que por vezes tinha, era a chave para a entrada no tal mundo imaginário. O mundo de acalmar a alma. Perdia algumas vezes essa tal chave. Mas desta vez tinha-a bastante firme.

 

Estava no meu quarto. Ele é pintado de azul, cor dos sonhos, e pintado de amarelo, cor da felicidade. Isto segundo a minha perceção, obviamente. O teto, ligação entre todas as paredes, é pintado de branco. Era então o símbolo da vida completa. A minha vida é cheia de perguntas. Uma delas é mesmo de qual cor eu sou pintado. Vejo-me no espelho, e não obtenho qualquer resposta. Certa vez até fui respondido, mas a resposta foi amplamente modificada no dia seguinte. Com o pincel, traço um sorriso falso. Era o que fazia sempre, infelizmente. O mundo real está cheio de falsidade, e eu sou mais uma pessoa nele. A tristeza já assombra demasiados corações, e a minha não pode assaltar mais um.

 

Entrei no mundo imaginário. Aqui já não era preciso pintar um sorriso, ele era genuíno. E a felicidade veio ter comigo. Deixa-a atravessar por todo o teu corpo. Vive o momento, pois daqui a nada vais voltar à realidade. O mundo imaginário não dura muito tempo.

 

Deitado, descanso depois de mais um dia. Comtemplo o mesmo. As pernas doem, o coração bate fragilmente e o cérebro está cheio. Pergunto-me, mais uma vez, porque estou assim. O dia foi igual a todos os outros... e a conclusão acaba por ser mesmo essa. O cansaço que sinto vem da monotonia dos dias, que só pode ser cessada após a morte.

 

O mundo imaginário desenvolvia-se. Também era comtemplado por mim. Não havia, naquele mundo, preocupações pensadas, decisões mal tomadas ou desilusões não evitadas. Não havia qualquer perturbação. Estava tudo calmo. A vida fluia. Estava tudo tão perfeito. Mas sabia que a qualquer momento, tudo aquilo iria acabar, o mundo real esperava-me. Ia-me abater.

 

Das inúmeras perguntas que fazia, havia uma que se destacava. O porquê se eu ser assim. Diferente. Diferente, não por uma boa razão, mas sim por uma má razão. Enquanto que os outros sobreviam ao mundo real, eu jamais pensava lutar contra ele. Perderia certamente. Perdia sempre todas as batalhas que tentava atravessar. Qualquer dia seria o fim.

 

Dou comigo no mundo real. O mundo imaginário escapou-se por entre os dedos, numa nuvem de fragementos. Esmagado, pisado e partido. Neste mundo real, passo a passo, sigo a vida da cidade. Não havia outra volta a dar. Nenhuma pessoa olha para mim, e eu não olho para nenhuma. A vida da cidade está ligada com a minha, e, finalmente, a luta prometida começa a ser formada.

 

Mas, sinceramente, sonho tanto que já nem sei com o que sonho.

 

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"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis." (Maria de Silva)

 

3 - OS MOMENTOS

 

1 – INÍCIO, OU O BOM MOMENTO

 

O verão tomava conta de nós. Não precisávamos de mais nada. Uma vez que tínhamos aquilo que queríamos, tudo fazia sentido. E éramos novas.

 

Lembraste quando roubávamos pequenas coisas na loja ao pé de minha casa? Quando nos escondemos debaixo da minha cama, quando os nossos pais procuravam-nos, furiosos, por termos furado a piscina recentemente comprada? Oh, sim, quando, à noite, soavam relâmpagos e trovões lá foram, e eu abraçada a ti, cá dentro. São lembranças.

 

E são apenas lembranças. Já não se podem viver, por mais que nós queiramos. Infelizmente, o presente é dono do passado e ambos são comandados pelo futuro. Tudo seria diferente se nós fôssemos os donos do tempo. Mas teríamos nós a capacidade de o controlar? Não. Nem a nossa vida controlamos perfeitamente, quanto mais o tempo.

 

Eramos pequenas e começámos a falar. De pequenas fizemos a nossa pequena amizade, essa que até hoje dura. Tantas vezes juntámos as mãos e arriscamos. É, por isso, e outras coisas afim, que gosto tanto de ti. As melhores coisas que fiz foram contigo. As melhores virtudes que tenho é graças a ti. Fazes parte de mim.

 

2 – ROMPIMENTO, OU O MAU MOMENTO

 

Surgiram, pouco a pouco, aquilo que temíamos. Por vezes as melhores ligações também recebem quebras. Subitamente o amor que nos unia é substituído por um ódio que nos separa. Agora vejo que o que antes nos fazia tremer, faz-nos mais fortes na atualidade. Eram coisas tão fúteis. Anormais. Ignoráveis. Mas não conseguíamos ignorar.

 

Discussões foram feitas. Lutas foram feitas. Nomes proferidos que magoavam. Nomes ditos que aumentavam a nossa surpresa. Estupefactas, víamos aquilo que cada uma era na realidade. Mudávamos radicalmente o que pensávamos uma da outra. Numa discussão, por vezes, dá para ver a personalidade completa da pessoa. Será ela racional, egocêntrica, idiota por ter argumentos irracionais?

 

Virámos costas. Estava o destino traçado. O futuro planeado quebrado. Tenho-te comigo para sempre, mas é impossível seguir-mos em frente. A nossa amizade foi, então, terminada.

 

3 – FINAL, OU O ÚLTIMO MOMENTO

 

Passaram vários anos. A tua presença tinha sido quase varrida do meu pensamento e do meu passado. Cada uma tinha feito a sua vida, e, felizmente, longe uma da outra. Mas, num dia de inverno, aquele telefonema veio. Sem meias palavras, fiquei a saber que estavas a morrer. Que, em espaço de dias, desaparecias do mundo, para sempre.

 

Como pude eu, perguntado-me a mim mesma, viver tanto tempo afastada de ti? Remorsos afetam-me por toda a alma. Sento-me e penso no que éramos. O que seríamos se não tivéssemos separado. O que teríamos vivido. O que seríamos felizes por ver que nós, felizmente, conseguimos superar a vida.

 

Não havia mais nada a fazer senão ir ter contigo. Seria doloroso, seria de cortar o coração, mas não podia fazer mais nada. Era o nosso último momento. Então viajei. Não pensei noutra coisa senão em ti, na grande viagem. Olhava as nuvens, olhava o solo.

 

Agora aqui estou eu. Estou aqui, mesmo ao teu lado. Não me vês, mas tu sentes que estou. Vi o teu sorriso ao pegar na tua mão. Vi os teus batimentos a ficarem mais acelerados.

 

Tens pouco tempo de vida, dizem os médicos. Cancro, dizem também outros. Não estarás viva amanhã. Mas, enfim, quero que saibas que, por tudo o que disse anos atrás, é tudo mentira. Nunca foi minha intenção dizer. Fazes parte de mim, e se te mal trato, é como se me estivesse a mutilar. E quero que me perdoes, por tudo o que fiz. Sei que me perdoas, não precisas de dizer.

 

Uma lágrima caiu. É tempo da despedida final. Não tenho mais palavras para dizer. Foram ditas no silêncio. Com um beijo, afasto-me de ti. Quase a sair, olho para ti uma última vez. Já não vejo a minha melhor amiga, mas um anjo. Que me irá proteger. Para sempre.

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"A vingança procede sempre da fraqueza da alma, que não é capaz de suportar as injúrias." (François La Rochefoucauld)

 

4 - A VINGANÇA

 

O funeral tinha começado. Está tudo vestido de preto. Eu inclusive estou vestida de preto, embora a minha alma esteja tingida de vermelho.

 

Era surpreendente aquilo que via. Tudo chorava pela morte de Paulo, o homem que protagonizava o funeral de hoje no cemitério da cidade. Mas eu não chorava. Aliás, sentia-me bastante livre. Irónica também, pois a razão deste funeral acontecer era inteiramente minha.

 

Tudo aconteceu cinco dias antes deste dia. Há já bastante tempo que notava que a minha pequena empresa, localizada nesta cidade, era alvo de roubos. Não conseguia entender que roubo se tratava, mas notava que o dinheiro que chegava no fim do mês, era menos do que o suposto. Então contratei, secretamente, um gestor, e a resposta chegou rapidamente. Paulo, o secretário, transferia dinheiro para uma conta dele, de uma forma que ninguém mais na empresa dava conta.

 

Paulo, pensava eu, era um secretário de confiança. Tinha uma amável mulher que era minha amiga. Foi dos primeiros trabalhadores. Só poderia ser engano, mas revelou-se ser mesmo verdade. Ele próprio disse da sua boca. Ora, Paulo, porque fizeste isto? Querias mais dinheiro? Uma vida melhor que pagasse todos os teus desejos?

 

É impressionante, via agora, o que o ser humano faz para ter dinheiro. Paulo, se não o tivesse morto, estaria preso agora mesmo. E a minha empresa estaria na falência.

 

E tudo isto chocava-me. Apetecia-me dizer, a cada pessoa daqui vestida de preto, que Paulo era um ladrão. Não merecia as lágrimas que corriam pela cara, que molhavam o chão de veneno. Paulo merecia o inferno. Espero, certamente, que o tenha.

 

Vingar-me do seu roubo não foi tarefa difícil. Foi, apenas, sabotar o seu carro. Poucos quilómetros da empresa iria acontecer um acidente, e aconteceu. Houve três mortos, um deles Paulo. Por vezes, por grandes causas, têm que morrer mais pessoas daquela que é pretendida morrer. Então a missão ficou concluída.

 

Pensava eu. Afinal, o meu trabalho não chegara ao fim. No dia seguinte, apareceu a mulher de Paulo no meu escritório. Furiosa, acusava a mim de ter matado Paulo. Estava certamente certa, mas era um perigo. A verdade precisava de ser tapada. Então também matei a mulher de Paulo, de forma escondida: cortei-a aos pedaços e espalhei por diversas zonas. Até agora era dada como desaparecida, possivelmente morta, e assim esperava que se mantivesse.

 

O funeral finalmente acabara. Fui das últimas pessoas a abandonar o local. Queria dar uma última olhadela para o seu retrato, ao lado da sua campa. Enquanto via, não sentia nenhum remorso nem nenhum arrependimento. Não sentia coisa alguma por aquele Paulo morto. Como tudo mudara, senhor Paulo. Agora descança no inferno merecido, com o teu dinheiro a arder. Amanhã é dia de trabalho. Sem ti.

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  • 2 semanas depois...

(Dado que ontem não me foi possível publicar o próximo conto, publico o mesmo hoje. :P )

 

"Hoje em dia conhecemos o preço de tudo e o valor de nada." (Oscar Wilde)

 

5 - A INVERSÃO

 

Observava o homem de longe. Era certamente um homem interessante de ser observado, pois já não via um como ele há bastante tempo. Argumentava, furioso, com outros três homens, que eram completamente diferentes.

 

Podia adivinhar, do fundo da sala, o porquê da discussão violenta que se originara ali, e tomava proporções grosseiras. O primeiro homem queria, muito simplesmente, um lugar no restaurante onde estava eu, mais outras pessoas, sentadas a comer. E outros homens não davam um lugar. Jamais dariam. Pois aquele homem que, num humildemente rancoroso, pedia um lugar, não o podia ter por simplesmente ser diferente de todos os outros homens e mulheres e crianças que ali se encontravam. Então a situação começara a descontrolar-se.

 

Uma situação típica de racismo, constatei. E queria afirmar isso com alguém. Abrir os olhos. Porém, mantive a minha boca fechada. Estas pessoas que aqui me rodeavam não sabiam o que era racismo, muito menos os gerentes do restaurante, que teimavam em não dar um lugar, por mais que houvesse disponível. O homem diferente agora bufava de fúria. Sentia, e dizia bastante alto, que era alvo de uma grande injustiça. E de facto, é verdade, aquilo era por si só uma grande injustiça. Mas já faz bastante tempo que esta gente perdera a noção. Não sabiam o que era justiça, o correcto, o que se devia ao menos fazer.

 

Para além de perder a noção, esta gente que desprezava o homem diferente, dominava o mundo. Depois da grande guerra que se gerou, só restaram, em grande número, estes como eu, e alguns como o homem diferente. Então o racismo também dominava o mundo.

 

A discussão terminou com um tiro seco, e o homem diferente caiu no chão, e deitar sangue. Os outros, em vez de ficarem alegres/a saltar por o terem matado/aliviados por ele ter sumido, ficaram em pânico, pois o sangue do homem, inundava o chão. O sangue era considerado um poderosíssimo veneno. Cegava só de o ver, sufocava só de o cheirar. Com mil e um cuidados, um empregado limpa.

 

Não podia suportar mais esta coisa. Levantei-me, sem ter acabado, e pago a conta. Fico parado enquanto via o homem diferente a ser levado. A sua cor branca era inconfundível. A minha, a nossa, a do mundo, preta, também o era. Tão diferentes, tão iguais. Mas só eu vejo isto. Só eu vejo como o mundo se inverteu. A inversão apoderou-se da gente. E estas pessoas estão perdidas. Não há mais nada a dizer.

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"O fim da esperança é o começo da morte." (Charles de Gaulle)

 

6 - A CARTA

 

Hoje era o dia de visitar a minha amiga deprimida. Cheguei à casa de Maria, a deprimida, e deparo-me com isto:

 

Meu Amor:

 

Parece que foi ontem que nos conhecemos. Lembro-me, perfeitamente, que o meu mundo não voltou a ser o mesmo. Ficou tão amplamente modificado, desde que entraste nele. A tua face, a tua voz, o teu charme, a tua ampatia... Foi preciso tão pouco de ti para eu entender que tu serias o meu suporte, a minha força e uma segurança onde poderia depositar todas as minhas fraquezas.

 

Tu, e só tu, eras aquela pessoa que eu necessitava para amar. Eras aquela pessoa que iria me amar de volta.

 

Durante a nossa pequena felicidade, dançámos por entre promessas, por entre visões de um futuro inventado e por entre tempestades que não nos abalaram. Lembras-te, meu amor, desta nossa pequena ilusão? Queriamos desejar que tudo o que tínhamos era perfeito. Mas, infelizmente, ambos sabemos que nada é perfeito. Tínhamos medo do que nos estava reservado. Não tenhas, dizia eu, mas era inevitável.

 

E nós tentámos superar o medo. Fizemos juras num inverno gelado. Olhámos-nos nos olhos, e perdíamos o receio. E jurava-mos... Sabes que por ti faria tudo, não sabes?, perguntavas tu. Tu dizias que farias todos os meus sonhos realidade. Que me farias, então, a pessoa mais feliz no mundo. Eu sabia, meu amor, que faríamos tudo para mudar o nosso destino, e o nosso amor seria salvo.

 

Oh, meu amor, mas então... veio a desgraça. Notava, pelos teus olhos, pela tua voz e por tudo o que me respondias. Algo, em ti, estava mudado. Estavas tão diferente... E, desde aí, já o sabia. Já estavas a amar outra pessoa.

 

Como, meu amor, foste capaz? Não foi o meu amor suficiente para encher a tua mágoa? Não foram as minhas lágrimas suficientes para notares que eu te amava? Não foi suficiente ter-te dado o meu coração?

 

Gritavas, meu amor, e querias que tudo acabasse. Não pode acabar. Aos teus pés, eu suplicava, que tudo poderia mudar. Tínhamos que lutar. O que a outra pessoa tem, meu amor, que eu não tenho? Será que ela conhece tudo o que há em ti? Oh, não, não há ninguém que conheça melhor do que eu. Então não me mandes embora, meu amor. Eu farei de tudo, e juro-te, que tudo ficará bem entre nós. Eu amo-te. Mais do que possas imaginar.

 

Abandonaste-me. Quem sou eu agora? Quem é, aquela pessoa, no chão, a chorar? A gritar? A beber? Com uma faca na mão? Não sou eu. Oh, não, não sou eu. É a pessoa que tu deixas-te a morrer. E sim, meu amor, fui feliz contigo. Mas, se agora não posso te ter, como serei?

 

Tudo em mim, enfim, caiu. Os nossos pedaços, de um amor inacabado, estão no chão espalhados. O nosso sangue, na parede, está pintado. Mas ainda oiço o teu amo-te. Ainda oiço a tua voz. Ainda oiço o teu coração a bater por mim. A luz de esperança que estava em ti, essa, porém, perdeu-se. Estás feliz agora? Se estás, ainda bem, pois cada um dá o que tem. Eu dei-te tudo...

 

Meu amor: a maior perda na nossa vida é o que morre dentro de nós enquanto vivemos. Não queiras voltar atrás, nós perdemos o que tínhamos. Sei que não terás o teu futuro sonhado com a nova pessoa, e não voltes aos meus braços se caso acontecer. Sobrevivi desta vez, não aguento uma segunda facada tua.

 

Mais um dia acabou. Mais um dia sem ti. Mais um dia que estou perdida. Não achas que eu deva acabar com isto tudo? Eu acho que sim, que eu devo. Já não tenho qualquer coisa para futuramente perder. Só mesmo a minha alma. Perder para o diabo, perder para um inferno que tu começaste. Enfim, é o fim.

 

Amo-te. Da tua amada.

 

 

Duas horas depois de escrever estas palavras, Maria morreu. Sabia exatamente a razão: o homem que a amava abandonou-a para seguir a vida política. Maria sempre achou que ele tinha escolhido outra mulher. E tinha: a política. O homem, conhecido por Gomes, dizia que não podia levar Maria consigo para a nova vida. Era demasiado problemática. Tempo de queimar a carta. A louca morreu e toda a sua loucura não vive mais no mundo.

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7 - A VISITA (Parte 1)

 

 

Era o fim de mais um dia quente de verão no bairro de Olívia e António. Arrumavam, os dois, várias coisas que estavam espalhadas pelo jardim. Partiam esta madrugada para o sul do país, a par com os seus vizinhos, que já tinham ido. Estavam impacientes para arrumarem tudo.

 

O bairro estava deserto. Nem parecia o bairro, sempre acolhedor, sempre friorento. As casas estavam completamente fechadas, num um único buraco nas persianas se notava, e não havia qualquer carro estacionado na rua, a não ser o do último casal a abandonar, por um mês, o bairro.

 

Deus sabe como é bom o mês no hotel ao pé da praia. Um mês de umas merecidas férias. O hotel era da propriedade do homem da Gabriela, uma simpática habitante do pequeno bairro, que fazia questão que todos os seus vizinhos fossem, com ela, para o Hotel, para assim passar férias. Era assim todos os anos. Este ano, Olívia e António decidiram ficar por mais tempo na sua casa. Problemas de trabalho, diziam. Seriam os últimos a chegar.

 

O sol descia freneticamente. Olívia olhava, com uma expressão vazia, para o seu, e de outros, bairro. Assustava-lhe a ideia de ser a última a sair. Devia ir, ao mesmo tempo, com Rita e Leandro. Mas já não o podia fazer, e estes já deviam ir muito longe. Nunca os apanhariam se fosse agora.

 

António chegou-se ao pé dela, abraçando-a. “Anda, amor, vamos para dentro. Está a ficar frio.” Um frio invulgar. Os dois foram para dentro de casa. E a noite, finalmente, caiu.

 

Já eram duas e meia da manhã. Ambos tinham combinado que só saíam de casa meia hora depois, mas Olívia já estava acordada, pois não conseguia dormir. No andar de baixo, verificava se não faltava nada, e desligava tudo o que era elétrico, quando um baque surdo ouviu-se do lado de fora da casa. Pensando ser um cão, coisa que não há naquele bairro, continuou a sua verificação, ignorando. Um novo baque se ouviu, e Olívia ficou estática a olhar para a sua porta. Um cão, desta vez, não seria, pois o baque soou demasiado elétrico.

 

Aproximou-se da sua janela, apenas com uma pequena luz da cozinha acesa. A noite, lá fora, estava escura, negra. Nenhuma luz no bairro estava acesa, para além de uma intermitente vermelha mesmo no centro da rotunda. Então, um súbito e ensurdecedor barulho disparou no meio da escuridão, assustando Olívia, que caiu no chão apavorada. O barulho era horrível e Olívia tapou freneticamente os seus ouvidos, cambaleando para o quarto onde António dormia. Surpreendentemente, este ainda dormia.

 

“António, a-acorda!” Disse Olívia, quase sem voz, abanando o marido. Este abriu um pouco os olhos, olhando para a sua amada com uma expressão confusa. “Já são ho... que barulho é este?” Disse, assustando-se e olhando para a janela tapada com a persiana, esfregando os olhos. “Está qualquer coisa lá fora.” Respondeu Olívia. “Só vi uma luz vermelha.”

 

O som não cessava um segundo e as luzes iluminavam todo o bairro, e Olívia e António nada podiam fazer senão sair do quarto. Indo para o andar de baixo, juntaram-se à janela, onde conseguiam espreitar o que realmente se passava lá fora.

 

O que se passava lá fora superava tudo o que era possível imaginar. Pousada, acima da grande rotunda do bairro, estava um avião repleto de luzes. Era um enorme avião, maior do que um das forças armadas. De lado, continua uma série de letras, umas do alfabeto normal, outras desconhecidas, e dois números:

 

 

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Todas as suas portas estavam fechadas, e o barulho que inicialmente tinha assustado Olívia, parou. Então, quatro pequenas portas foram abertas, e um novo barulho espalhou-se por todo o bairro, que rapidamente se mudou para um outro contínuo.

 

Olívia e António não sabiam o que reagir àquilo tudo. Tentaram decifrar o que seria aquelas letras estampadas no avião, mas foi uma tentativa em vão.

 

Alguém apareceu em cada porta do avião. Todos eles homens, vestiam a mesma roupa, e o barulho fora novamente modificado. Desta vez, uma voz humana fez-se ouvir, falando várias coisas. Era, novamente, uma língua desconhecida.

 

Russos!” Exclamou António, percebendo qual era a língua que estava a ser falada. “São Russos.” Concluiu. “Russos no nosso bairro?” Sussurrou Olívia, não acreditando. Nada mais falaram. Em cada porta, surgiram mais uma pessoa, com uma roupa diferente. Pouco tempo depois, uma nova voz surgiu do avião, e as quatro novas pessoas foram atiradas para fora do avião.

 

O pequeno monstro então desligou as luzes, e subiu, lentamente, para os céus. Olívia e António continuaram estáticos ao pé da janela, enquanto viam as quatro pessoas atiradas em pé, a falar entre si. “Vamos lá acabar com isto.” Disse António, pegando numa faca da cozinha e colocando no seu bolso. “Não!” Exclamou Olívia, “Não vás! Não sabes o que são.” “Não te preocupes, meu amor.” Disse António, saindo de casa.

 

Estava frio lá fora. As quatro pessoas, ao ouvirem o barulho da porta, viraram-se para António. Olharam-no durante segundos, e rapidamente começaram a correr em seu encontro. Começaram a gritar, com os braços no ar. António, assustado, voltou para dentro de casa, fechando a porta. Olívia encontrava-se em estado de choque. Subitamente, as quatro pessoas chocaram contra a parede de casa, caindo novamente no chão, sem algum sentido.

 

Olívia e António puderam ver, mais pormenorizadamente da janela, de quem se tratava aquela gente. Os quatro , como já tinham visto, tinham roupas iguais. Calças pretas e um grande casaco castanho com manchas azuis. Cada uma tinha na mão uma espécie de disco, com uma pequena luz azul a piscar de lado. Os seus rostos eram de cor clara, e o cabelo loiro. Seriam certamente russos.

 

Entretanto, uma das pessoas deu sinal de vida. Levantou-se, facilmente, e dirigiu-se para o meio da rotunda, cambaleando. Com rapidez, colocou o disco que tinha na mão no chão, e este pareceu ganhar uma nova luz para além da azul. Abriu o seu casaco, e de lá tirou uma arma. Sem preceito, apontou à sua própria cabeça, e atirou. Caiu morto no chão.

 

Os outros três continuavam no chão. António e Olívia não se atreviam a sair do lugar.

 

Quem seria aquela gente?

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7 - A VISITA (Parte 2)

 

 

Olívia e António não sabiam o que fazer. As três pessoas que se mantinham no chão não se moviam. "O melhor é fugir." Disse António. "Mas o nosso carro está lá fora!" Exclamou Olívia. "Saímos pelas traseiras." Sussurrou o seu marido. E então o casal saiu de casa, entrando na penumbra da noite.

 

Um mês depois

 

Dimitri Metanov tinha chegado então à sua prisão. O julgamento não demorara muito tempo. As provas estavam postas na mesa, tudo estava descoberto. Poderia fazer Dimitri alguma coisa? Não. “Prisão perpétua”, dissera o júri, “Teve sorte não ser uma pena de morte.” Dimitri riu-se desta afirmação. Prisão perpétua era por si só uma pena de morte. Sacanas destas pessoas que pensam saber da lei.

 

A caminhar pelos corredores da prisão, ao ver cada olhar dos prisioneiros, Dimitri lembrava-se de tudo o que fez para chegar ali. Está preso, mas foi de facto, bom. Bastante bom.

 

Dimitri Metanov, russo, tem quarenta e dois anos. Desde dos catorze anos que ingressou a chamada ”espionagem”. Influências do seu pai ditaram o futuro do seu filho. Aos vinte e três anos casou com uma russa, e mudaram-se para o Bairro número cinquenta e três. Já Olívia e António viviam nesse bairro, mais dois casais. Rapidamente se deram bem, e Dimitri viu que era um bom local para expandir o seu negócio, a espionagem.

 

O negócio era simples: uma tripulação depositava um pequeno número de pessoas no Bairro, que facilmente fazia o seu trabalho. Ao colocar os discos que traziam na mão, era enviado um sinal para a Rússia, onde toda a grande equipa de Dimitri trabalhava para descodificar informações sobre o seu país rival, os Estados Unidos.

 

Como Dimitri conseguia fazer isto sem ninguém do Bairro saber? Convidava a todos os habitantes que fossem para o hotel dele, a sul do país, por um mês. Em um mês, a tripulação fazia o seu trabalho anual. E Dimitri ganhava dinheiro incalculável, do próprio governo russo.

 

Mas há um mês, tudo correra mal. Olívia e António decidiram ficar na noite onde as operações iniciaram. E ambos morreram. Os “agentes” que eram contratados eram ordenados a matar quem visse algo. Olívia e António viram. Ao sair de carro, dos três agentes que se mantinham vivos sem o casal saber, matou-os ao assaltar o carro na estrada, degolando-os.

 

Os outros casais, do Bairro, ao notarem o desaparecimento de Olívia e António, ligaram à polícia, e a polícia encontrou todo o esquema que era ano a ano feito exaustivamente, mesmo com os avisos de Dimitri. Este foi logo detido no dia seguinte, e então o julgamento foi feito duas semanas após. Dimitri disse apenas uma frase em russo, que foi traduzida como “Viva o povo da Rússia”.

 

Era, por outro lado, surpreendente. Foram feitas dezenas de visitas ao Bairro cinquenta e três, e bastou falhar uma para a vida de Dimitri ter ido abaixo. Bem ele sabia que merecia a pena de morte, mas o governo americano pensa que consegue recolher informações dele. Todo o país está em estado de choque, e até mesmo a Rússia, que não faz declarações. Dimitri fez parar meio mundo.

 

O funeral de Olívia e António foi feito com larga escala de atenção. Uma bandeira dos Estados Unidos foi colocada no meio das duas campas. Duas pessoas a morrerem por uma escolha.

 

Dimitri chegou então à sua cela, tendo consigo um qualquer companheiro de prisão. Ou talvez nem seja um qualquer companheiro. Nunca se saberá se Dimitri teria um plano caso fosse preso. Agora ao olhar para o seu companheiro, albino, olhos azuis como Dimitri, tinha a certeza de algo: a Rússia ainda não tinha finalizado o seu trabalho

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